"Entendido como sendo todas as formas de actividades físicas que, através de uma participação organizada ou não, têm por objectivo a expressão ou o melhoramento da condição física e psíquica, o desenvolvimento das relações sociais ou a obtenção de resultados na competição a todos os níveis, o desporto não está à margem do processo de globalização. O desporto adquire um importante estatuto como fenómeno de globalização e, como diria Lipovetsky (2007), de “hipermodernidade”.
Pelas paixões que suscita, pelas identidades que mobiliza, pelas estratégias que reflecte, bem como pelos interesses económicos, o desporto constitui-se como uma importante dimensão da sociedade, que, nas suas formas modernas, se procurou instituir e afirmar como uma linguagem universal e como um modelo cultural adoptado internacionalmente. Um tal modelo tornou-se, pelo seu modo de difusão, numa das formas mais “visíveis” ou um dos principais “motores” da mundialização.
O desporto é talvez a forma mais popular e universal de participação cultural, na medida em que anula barreiras culturais (a língua, a religião, o sistema político, as fronteiras geográficas, etc.). Lipovetsky (2007) não está, certamente, a exagerar quando sublinha que, num contexto de paixão pelo desporto, as competições, sobretudo as de alto nível, despertam um grande entusiasmo e fervor colectivo e que, dificilmente, se encontra noutra esfera da vida social.
O aumento dos tempos livres e a diversificação do mercado dos consumos culturais vieram produzir alterações nos estilos de vida nas sociedades mais industrializadas (Horne, 2006). O lazer, apesar de ter sempre existido de uma forma directa ou indirecta, tornou-se reconhecido como um direito por parte da população, especialmente após a Revolução Industrial e, principalmente, após a II Guerra Mundial. O desporto constitui um espaço compensatório das tendências à rotinização do quotidiano, construído pelos actores no decurso de estratégias visando a expressão de “emoções fortes” – a busca da excitação (Elias & Dunning, 1992).
A compreensão da globalização no desporto remete-nos para as origens do desporto moderno, que nasceu no século XVIII, em Inglaterra, no contexto da Revolução Industrial e de um capitalismo emergente. Para além de um passatempo dos “gentlemen-farmers”, onde a prática física não era esquecida, numa ascese de preparação de caça à raposa e de corridas a cavalos, a génese do desporto em Inglaterra desenvolve-se entre 1820 e 1860 no seio das public schools, privilegiados estabelecimentos, que agrupam os filhos da alta sociedade, assegurando uma forte homogeneidade da elite social.
O processo de “desportivização” (expressão introduzida pelo sociólogo Norbert Elias) designa a transformação das formas de organização e desenvolvimento das práticas físicas em Inglaterra, assim como a sua generalização às restantes sociedades ocidentais, tal como a “industrialização” designa idêntico processo relativamente às formas de produção e trabalho). Este processo desenvolveu-se, grosso modo, em cinco fases.
Numa primeira fase (séculos XVII e XVIII) surgiram o críquete, o golfe, as corridas de cavalos e o boxe. Numa segunda fase (século XIX) o futebol, o râguebi, o ténis e o atletismo. Uma terceira fase (finais do século XIX e princípios do século XX) engloba a disseminação das formas de desporto “inglesas” na Europa continental e nas colónias britânicas e está associada à emergência de intensas formas de nacionalismo e à institucionalização da maioria dos desportos a nível internacional. Uma quarta fase (dos anos 20 aos anos 60 do século XX) é marcada por “lutas” entre as nações ocidentais e não ocidentais para a sua afirmação no desporto. Uma quinta fase (desde finais da década de ‘60) caracteriza-se por um crescente protagonismo de nações não-ocidentais, contestando a hegemonia ocidental no desporto. A emergência e difusão das modernas formas desportivas à escala global de uma forma mais vasta com o “processo civilizacional” (Elias, 2006).
O arranque do processo de globalização no desporto está associado à terceira fase do processo de desportivização. O último quarto do século XIX testemunhou a disseminação do desporto, o estabelecimento de organizações desportivas internacionais, a aceitação mundial de regras de governo de desporto, a multiplicação de competições entre equipas nacionais e o estabelecimento de competições globais, como os Jogos Olímpicos e os campeonatos do mundo em muitos desportos.
Nesta fase da desportivização, os ocidentais e em particular os ingleses, foram os “jogadores” dominantes. O Reino Unido era, então, o poder hegemónico e os seus desportos (futebol, críquete, atletismo) proliferaram pelo mundo, diminuindo o espaço de influência dos jogos nativos tradicionais. Mas não estiveram sozinhos. Os ginastas suecos (método Ling, 1776-1839) e dinamarqueses, o movimento do Turnverein alemão, são exemplos da fase europeísta no desenvolvimento de um desporto global (Chamerois, 2002).
A luta pela hegemonia, que começou nos anos ‘20, não ocorreu apenas entre o Ocidente e o resto do mundo, mas também dentro do próprio mundo ocidental. De uma forma crescente, o desporto norte-americano começou a disputar a supremacia inglesa. Nos anos 1920 e 1930 práticas desportivas como o basebol, o basquetebol e o voleibol foram difundidos nas partes do mundo onde era maior a influência americana – Europa, América do Sul e partes da Ásia-Pacífico.
Após a II Guerra Mundial, os EUA assumiram uma hegemonia imperial, que resultou na expansão dos desportos “americanos” no mundo. O desporto tornou-se então um idioma global entre os anos ‘20 e o final da década de ‘60. Desde os finais da década de ‘60 alteraram-se os equilíbrios do poder. Em desportos como o badminton, o críquete, o ténis de mesa, o futebol e o atletismo, cresceu a influência de asiáticos (com especial destaque para as designadas “artes marciais”: karaté, judo, aikido, kung-fu, taekwondo, etc.), sul-americanos e africanos. O controlo das organizações desportivas internacionais e do movimento olímpico começou a escapar, embora devagar, das mãos exclusivas do Ocidente."
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