"Eu julgo que o sentido da vida está próxima da noção de sagrado. De facto, é o sagrado que nos dá o sentido da vida. No cristianismo, Deus fez-se homem, na pessoa de Jesus Cristo, para que pudéssemos entender, de modo diáfano e transparente, que a vida tinha sentido, se amássemos a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. E foi mais explícito ainda: sempre que damos de comer a quem tem fome, ou de beber a quem tem sede, sempre que vestimos os nus e visitamos os encarcerados – a Ele, Jesus Cristo, o fazemos, porque Ele está presente em cada uma das criaturas de Deus. Escutemos a Sua Palavra: “Eu estarei convosco todos os dias até à consumação do mundo”. No cristianismo, portanto, encontra-se o sentido da vida, amando a Deus e amando o próximo. A partir do Iluminismo e, mais declaradamente, dos “mestres da suspeita”, a secularização, a laicização simbolizam, hoje, o advento de um espaço sócio-político, onde a Vida, a Sociedade, a Cultura e a História não deixam conduzir-se pelas encíclicas papais, pois que, em matéria de religião, a vida social e política deverá distinguir-se por uma rigorosa neutralidade. A moral, o direito, a medicina, a engenharia, o conhecimento científico enfim (designadamente na Euro-América) perderam (ou esqueceram) qualquer vínculo ao Deus de Jesus Cristo e o positivismo, o cientismo, o materialismo e outras escolas filosóficas falam da religião como um assunto privado, decisão de cada um de nós, ou circunscrito aos templos, aos santuários, às igrejas, longe portanto da esfera pública, longe portanto do conluio Trono-Altar, como ardentemente o desejava, nos primórdios do século XX, o Integralismo Lusitano. E uma questão fumega de toda esta neutralidade religiosa, ou do discurso dos propugnadores de um mundo sem Deus: o sentimento religioso atravessa momentos agónicos?
Não deixo sepultar no cesto dos papéis a pergunta e repito: o sentimento religioso atravessa momentos agónicos? A alta competição desportiva, na forma de espectáculo, dizem-nos que não. Aceito perfeitamente que “não é preciso religião nenhuma, para ser-se honesto ou caritativo”, mas há ou não necessidade de transcendência, nos “jogos de vida ou de morte” e nas frases “vamos deixar a pele no campo” e “este jogo é das coisas mais importantes da minha vida”? E eu questiono, também: e a transcendência, mesmo à luz de uma simples metafísica da subjectividade, não se aproxima do sentimento religioso? Quando abordamos questões extremas, como estas: Donde viemos? Para onde vamos? – porque os argumentos da Física se alicerçam sobre a observação, a experimentação e a matemática, cientificamente entramos num espaço de nulos, ou nadas, enfáticos que, sobre este assunto, pouco têm a dizer. Uma pergunta interpela-nos a todos: porque existe a realidade e, pelo contrário, não existe nada? Mesmo que nos deixemos capitanear pelo mais distinto cientista, respostas convincentes não as encontramos, por mais que as procuremos. Há, em todas as coisas e em todos os homens e mulheres, um segredo primordial da realidade, que escapa ao poderio fantástico da nossa tecnociência. Este segredo primordial, coonestado pelos cientistas e filósofos, precisa, para sua resolução, de Deus, religião e fé? “Não precisa!” diz-nos Comte, em reverente dobre de espinha, diante do “Grand Être”, ou seja, a humanidade em geral, a nova igreja de que ele se considerava o “pontífice máximo”. O verde translúcido dos seus olhos vê assim o progresso da humanidade: do mito passou à metafísica e desta à ciência positiva. E, no século XX, em antítese ao positivismo de Augusto Comte, eis que surge o Padre Teilhard de Chardin (1881-1955), um homem simultaneamente místico e cientista.
Teilhard, filho intelectual de Henri Bergson (1859-1941) e portanto da filosofia vitalista deste filósofo e das suas ideias de uma evolução criadora (élan vital) – Teilhard tem uma visão genético-histórica da realidade, desde a cosmogénese à cristogénese, passando pela biogénese e pela noogénese. Que o mesmo é dizer: o Mundo, o Homem e Deus, através da lei complexidade-consciência, fazem uma síntese em Cristo. E assim do que precede se infere que tudo está em Deus e Deus está em tudo. Leonardo Boff, um dos próceres da teologia da libertação, escreve luminosamente no seu livro Jesus Cristo Libertador (Editora Vozes, Petrópolis, 2001): “ Se tudo foi criado por, para e em Cristo, de tal forma que tudo possui traços do rosto de Cristo, então, de forma muito especial, o homem, irmão dele, segundo sua humanidade. O homem não é apenas imagem e semelhança de Deus, é também imagem e semelhança de Cristo (…). Por isso, cada homem faz lembrar o homem que foi Jesus” (p. 161). E eu acrescento: mesmo um jogador de futebol, mesmo um campeão de qualquer outra modalidade desportiva? Álvaro Magalhães elucida-nos, a propósito: “Estando na sua origem ligado ao mítico e ao sagrado, o futebol nunca passou plenamente para o plano profano (embora seja hoje vulgarmente classificado como indústria, negócio, espectáculo) e mantém uma estrutura coerente desse sagrado. Ele vive da fé e da penitência de milhões de fiéis propensos à conversão e é a instituição que une as pessoas e lhes permite atingir estados de êxtase emocional, anteriormente associados às cerimónias religiosas. Mais importante ainda, ele re-liga, cria laços. Por isso, é frequentemente considerado um análogo da religião ou, como disse Robert Coles, uma religião substituta” (A História Natural do Futebol, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004, p. 244).
E uma religião substituta, porquê? Porque ninguém pode viver sem religião. E se, como alguns querem, Deus morreu, são inúmeros os deuses que por aí resplandecem, rodeados de famintos de milagres. Enfim, se Deus morreu, o sentimento religioso continua vivo e a hipnotizar os ateus e os agnósticos, que nos rodeiam. O que são José Mourinho, Pep Guardiola, Fernando Santos, Jorge Jesus, Sérgio Conceição e Ronaldo, Messi, Mbappé, Neymar, Modric. Griezmann, Pogba (e mais outros nomes poderia escrever) senão deuses da pós-modernidade? O desporto moderno nasceu, e não o dissimulou, em pleno seio do cristianismo. Na primeira metade do século XIX, o cónego Thomas Arnold e outros clérigos anglicanos (e não só anglicanos) descobriram, no desporto, um inigualável espaço pedagógico, capaz de habituar os mais jovens à vivência daqueles valores que devem informar um comportamento intelectual e moralmente desejável. “De resto, ainda hoje há clubes que mantêm capelas nos estádios e aí celebram missas, em que a bandeira do clube é erguida, no momento da elevação, e quase todos promovem a bênção de jogadores e instalações” (Álvaro Magalhães, op. cit., pp. 244/245). Em Kant e o problema da metafísica, Heidegger dixit: “Nunca nenhuma época obteve tantos e tão diversificados conhecimentos sobre o ser humano, como a nossa. E, no entanto, nenhuma outra época mostrou saber tão pouco, sobre o homem, como a nossa”. O homem perdido nas colunas compactas do colectivismo (vejam o que se passa, na Venezuela) e nas interpretações do estruturalismo; o homem reificado pelas grandes centrais de manipulação da opinião pública; um homem que, definitivamente, não sabe quem é porque “Deus morreu” – este homem morreu também. Já Foucault o disse, já Sartre o sentenciou, n’O Existencialismo é um Humanismo: “não há natureza humana, porque não há um Deus que a conceba”.
E no meio deste indiferentismo, deste agnosticismo, deste ateísmo pós-modernos, em relação ao Deus de Jesus Cristo, no futebol não há pensamento, sem um sistema que se apresente como absoluto. O sistema está antes de todos nós. O sistema, no futebol, é o clube e o clube, como todos os sistemas, é a alienação suprema, porque apaga as raízes da alienação. Marx utilizava a noção de estrutura, na crítica do existente e não na sua apologia. As figuras primeiras de certos clubes dizem todos o mesmo, com as mesmas palavras, os mesmos objectivos e desenham os mesmos gestos rituais. São pessoas que têm a Verdade e ao sistema convém súbditos acríticos, crentes devotos, com horas e horas de televisão e “especializados” em títulos de jornais. Robôs autênticos, nas palavras do “pontifex maximus” de um sistema encontram a unanimidade indispensável para atear a discórdia, com palavras e atos que envergonhariam os sentimentos impolutos dos fundadores dos clubes, que sabiam que, pelo desporto (e portanto, pelo futebol) se poderiam exaltar os grandes valores morais da humanidade. A missão de um desportista, antes de qualquer outra, não é cultivar o ódio, mas a paz, mas o encontro fraterno. Como já o salientou Sílvio Lima (Obras Completas, Vol. II): “O estádio deve desempenhar sempre uma dupla função: 1º. Ser uma verdadeira escola do desporto, uma palestra (de pale, luta) no rigoroso significado etimológico helénico, quer dizer, um local onde a mocidade se entrega, sob vigilância médica, aos exercícios desportivos, quer individuais, quer colectivos. 2º. Um templo, onde em determinados dias o público pode assistir, como fiel devoto, a certas provas desportivas, espécie de ofícios sacros, de festivais olímpicos” (p. 1081). E, depois do insigne ensaísta, Sílvio Lima, dos maiores da nossa história literária, respigo meia dúzia de palavras da Carta de Princípios do Provedor da Ética no Desporto (PNED-IPDJ-SEDJ): No Desporto, deverá conciliar-se o exercício físico, com “a exigência de uma Cultura baseada numa atitude de constante tolerância e respeito, pela dignidade humana”. Daí, o estádio, como exemplarmente o refere Sílvio Lima, ser uma escola e um templo…
Atribuindo significação a tudo, o clube significa-se. E como é o “pontifex maximus” que sempre fala, em nome do clube, o “pontifex maximus” (ou. se quiserem, o presidente) tem sempre razão. O adepto não tem de saber, não tem de criticar, tem de lembrar-se das palavras-de-ordem de quem manda… “super omnia”. Nada mais! O pessoano (do heterónimo Álvaro de Campos) “merda, sou lúcido” é tão perigoso como as “heresias” de Galileu aos cardiais do Santo Ofício. Que um adepto seja lúcido é tudo o que não interessa à classe dominante de certos clubes de futebol profissional. E assim tão fundamentalistas são os espasmos e a gritaria descabelada da rapaziada que assalta as academias e os centros de treino, como a prepotência e a esclerose dos dirigentes que se julgam fadados por Deus à eternidade, nas suas altas funções clubísticas. Tanto a uns como aos outros, impele-os um código moral, onde o mal e o bem não têm cabimento, porque a moral que os rege não é moral, é capricho, descontrolo, pura arbitrariedade, nos adeptos furiosos, e maquiavelismo, nos outros, aguilhoado por interesses, que valem muito dinheiro, se continuarem no poleiro do poder. Enfim , nuns e noutros, o seu citius, altius, fortius não decorre do património axiológico que nos legaram a filosofia grega, o espírito jurídico latino e a mensagem judaico-cristã, não corporiza o ideal humanista do Padre Manuel Antunes, que reduzia a dois os arquétipos dos humanismos: aberto e fechado: “É aberto todo o humanismo que, qualquer que seja o seu ponto de partida ou o seu centro de gravidade, não exclui que o homem venha a ser aperfeiçoado nas suas virtualidades em certas das suas aspirações mais fundas por uma revelação gratuita. É fechado todo o humanismo que excluísse, por sistema, toda a possibilidade do sobrenatural” (Verbo-Enciclopédia luso-brasileira de Cultura, palavra Humanismo).
Se bem entendo a mensagem de Coubertin, relacionar desporto, educação e valores (éticos e estéticos) é fundamental, para que o olimpismo se cumpra. Por isso, não há desporto sem valores. Não há desporto neutral. O respeito pelo clube que serve, o profissionalismo, o “um por todos e todos por um”, a coragem, a disciplina, a generosidade, o companheirismo, o “fair play” são valores que devem esplender no comportamento de um atleta. Treinar, para um treinador, não consiste apenas em ensinar técnicas e táticas, mas também comportamentos e atitudes, maneiras de ser e mundividências. Eu (e não sou só eu) entendo por pós-modernidade o tempo posterior à modernidade, isto é, o tempo posterior à queda do gangrenado muro de Berlim. O filósofo Zygmunt Bauman, falecido, em Londres, em 2017, chamava à pós-modernidade a “modernidade líquida”, onde nada é sólido, nada é durável, tudo é descartável, tudo é para consumir e deitar fora. Governada por políticos, artistas na oposição e desastrados no poder, pujantes de simpatia, entre os mais jovens, para quem a cultura dos mais velhos é mera repressão – a “modernidade líquida” tem o seu desporto, tem o seu futebol, que se distinguem pelo “pensamento único” (ao serviço do casino financeiro internacional) com que atacam os principais problemas. Mas não é só o futebol que o capital especulativo transnacional governa, os próprios Estados, diante dele, perderam a sua identidade. A própria noção de soberania tinha os seus símbolos. A moeda? Com a moeda europeia comum, não há por aí país europeu que por ela possa sentir-se representado e definido. As fronteiras? As Forças Armadas? Tudo é comum. Onde começam e acabam a Pátria e o Estado? Restam-nos a bandeira e as equipas de alta competição desportiva, principalmente as equipas de futebol. Cada vez se produz mais, sem que se distribua, fraternalmente (não somos todos irmãos em Cristo?) o produzido. Mas também aqui o futebol tem um importante papel a desempenhar, em favor de uma oligarquia da mediocridade: como o venho dizendo, há um bom par de anos, há um futebol que adormece o povo à recusa da sociedade injusta estabelecida. Fiat lux, para que vejamos, nitidamente, o presente boçalizado de um certo futebol."
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