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terça-feira, 27 de novembro de 2018

Primeira página de golos esquecidos

"Pormenores fantásticos saltam-nos à vista quando lemos jornais antigos. Neste caso, um exemplar do Sporting (publicado no Porto e sem qualquer ligação ao clube de Alvalade) que dedicava uma manchete a um jogo do Benfica e, lá dentro, nem o resultado trazia.

O meu bom amigo Bernardo Trindade, grande alfattabista de Lisboa, nas pisadas do pai, com o qual começou a trabalhar desde miúdo, traz-me volta e meia autênticas relíquias. A última foi um exemplar do Sporting, jornal desportivo que não tinha conexão com o clube de Alvalade, datado de 9 de Novembro de 1926. A primeira página trazia em manchete: 'Bemfica - Carcavelinhos'. E Benfica com M, sem tirar nem pôr.
Uma foto ocupava o espaço mais abaixo e uma legenda era esclarecedora: «Manoel Rodrigues (Carcavelinhos) salta o eixo com Francisco Costa (keeper do Bemfica), que com a sua decisão conseguiu enviar para corner evitando um golo certo».
O documento é extraordinário em todos os aspectos. Editado no Porto, o Sporting pretendia ser um jornal de todos os desportos. E era. Abria com uma secção dedicada às perguntas dos leitores. Com as respostas devidas, claro está.
Para terem uma ideia da coisa, cá vai um excerto, porque é deveras curioso.
'P - Sendo o Sporting um jornal que todas as cores clubístas lêem, porque demonstra um certo facciosismo pelo FC Porto?
R - Alto, que é lá isso?! Aqui não há facciosismo. Limitamo-nos a aplaudir o melhor... e nada mais.
P - Qual é a razão por que, sendo o Sporting melhor jornal português da especialidade, e tendo bastantes críticos de futebol, não se refere aos desafios de categoria inferiores?
R - Se o senhor trabalhasse num jornal, veria quantas dificuldades há para se conseguir o que pretendemos. É impossível - saindo o Sporting à segunda de manhã - trazer esses relatos porque os da 1.ª categoria ocupam todo o espaço'.
E por aí fora. Com a ressalva: 'Ser modesto, correcto e desportista é tudo o que desejamos dos nossos consultores'.
E o Benfica?
Toda a edição fervilhava de temas interessantes. Análise ao momento do profissionalismo inevitável do futebol nos anos vindouros, com uma declaração assinada por várias dirigentes do FC Porto garantindo que o clube não dependia um tostão com jogadores, nem para auxílio de equipamento. Informação actualizada dos grandes combates de boxe internacionais, um pouco por todo o mundo. Uma crónica mundana enviada de Paris. Novidades da província, de Beja a Mangualde e de Setúbal a Ovar. Páginas centrais exclusivas: futebol! Dois grandes jogos. Académico do Porto - Sport Progresso e Ramaldense - Coimbrões.
Homessa!???
Virei e revirei cada uma das dezasseis páginas.
Comecei do fim para o principio.
Nada!
Nem mais uma linha, nem sequer o resultado do Benfica - Carcavelinhos da manchete. Mistério.
Convenhamos: a imprensa em 1926 era assim, e não há como explicar muitas das suas incongruências. Registam-se com bonomia, como faço aqui, e procuram-se os textos que valem a pena ler. Neste número do Sporting são vários. Agora Benfica - Carcavelinhos foi um ar que lhe deu.
'Aguenta o rojão, Sarapião', diriam os brasileiros.
Conto-vos este episódio mais por chalaça do que por outra coisa qualquer. E acrescento: a análise ao profissionalismo emergente é profundamente bem escrita e assente em premissas fundamentais. Valerá, se calhar, voltar ao assunto.
Ora bem, certo é que não saio, daqui sem voltar à vaca fria, isto é, ao Carcavelinhos - Benfica.
Jogou-se oito dias antes - assim se explica a primeira página simplesmente gráfica? É provável.
Contou para o Campeonato de Lisboa e deu cargas de pancadaria. Os alcantarenses marcaram dois golos na primeira parte e foram para o intervalo de papo cheio. As Amoreiras já ferviam de nervos. No segundo tempo, o Benfica reduziu. No último minuto, um lance confuso na área do Carcavelinhos. Jogadores e público encarnados exigem penálti. Cara de pau, o árbitro ordenou o fim do jogo. Ui! Queimou o pavio que ligava ao barracão da pólvora.
Os adeptos invadiram o campo. Correrias, desordem, pranchadas.
Tumulto completo! A imprensa, e não o Sporting, nesta caso também bateu forte e feio: 'O público não tem o direito de chamar a si o encargo de justiçar o árbitro quando este erra! Agredir o árbitro ou qualquer jogador quando eles, para saírem do campo, têm de atravessar, indefesos, alas de espectadores exaltados, constitui um atentado que reclama a atenção da polícia. Transformarem-se campos de futebol em terrenos de concentração de força armada - mas protejam-se árbitros e jogadores'.
Parece que a discussão sobre a profissionalização do futebol tinha de ir ao mais fundo do problema. Não se tratava apenas de pagar ou não aos jogadores.
Quando ao resultado que o Sporting não deu, dou eu. O Bemfica (com M) perdeu 1-2. Mas não foi por causa da letra..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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