"Manama - Quando a senhora sentada a meu lado no voo da Gulf Air que nos trouxe do Koweit ao Bahrein soltou um grito, percebi que tinha estado demasiado absorto nos atropelos onírico-sexuais de Jonathan Littell em “Uma História Antiga”. Olhei para ela com um pouco mais de atenção e vi até ao fundo dos seus olhos absolutamente negros um brilho horrorizado. Depois, o avião repetiu o mergulho, e o sabor do chá de menta veio-me à boca por via daquele tal fenómeno das mudanças de temperatura que provocam o aumento do dióxido de carbono. A senhora do lugar 9D voltou a gritar.
Reparei que havia gente a rezar, sei lá eu a que deus se não acredito em nenhum. Não me passou pela cabeça ter medo. Nem coragem. Nem coisa nenhuma se não observar o que se passava em redor com a curiosidade própria dos que, de vez em quando, têm a possibilidade de assistir ao momento em que a espécie humana está à beira de borrar as calças, imagem muito grotesca para aqueles que ainda têm fé na espécie humana. De alguma forma, passar a vida em aviões e dar demasiada importância ao tempo que faz lá fora torna-se tão incongruente como um Vasco da Gama que enjoasse.
Desconheço por completo a resistência dos materiais aeronáuticos perante a violência das tempestades, mas creio serem bastante mais fiáveis do que os da nau São Gabriel mesmo que estivéssemos a abanar por todos os lados, da popa à proa, e a receber jactos de luz dos relâmpagos como se o tal deus dos meus companheiros do voo GF 214, entre a Cidade do Koweit e Manama, estivesse entretido a tirar-nos fotografias com uma câmara equipada com flash. Nem poderia fazê-lo de outra forma: o céu estava escuro como breu.
Guimarães Rosa gostava de dizer que mais vale cair de um sonho do que de um terceiro andar. Ora, 35 mil pés de altitude ficarão ligeiramente acima de um terceiro andar mas consideravelmente abaixo de um sonho. Neste caso, um pesadelo.
Nunca tive medo, pânico, fobia, nervoso miudinho ou qualquer um desses sentimentos que costumam ser associados a aviões, mas é óbvio que, se um dia tiver de tombar lá do alto dentro de um, gostaria que a pessoa no lugar a meu lado não fosse um gordalhão parecido com o Bud Spencer a suar em bica das mãos peludas. Até porque haveria uma possibilidade bastante espontânea de ele querer dar-me a mão nesses segundos definitivos.
Voltei de novo a minha atenção para a senhora do lugar 9D, a meu lado. Não lhe senti nenhuma necessidade de me dar a mão, até porque as levava juntas e agarradas uma à outra como se tivessem a vida lá dentro. Já não gritava, mas murmurava qualquer coisa volta e meia e eu não percebia onde é que ela queria chegar. A casa, certamente.
Senti um certo alívio por me terem arranjado um lugar ao lado de uma mulher bonita numa situação de eventual emergência, dispensando-me do Bud Spencer, do Kirk Douglas, do Gian Maria Volonté e até do senhor general Ramalho Eanes, todos eles companhias menos estimulantes num momento desgraçado.
A senhora do 9D cheirava a flores e senti que isso era ligeiramente tétrico. O avião foi descendo, lá como pôde, entre trancos e barrancos, e os seus olhos eram olhos compridíssimos de criança, com uma tristeza perdida que parecia não encontrar lugar por onde sair. Podem escrever-se poemas sobre olhos assim.
Não sei se já vos disse que a senhora do 9D era linda de morrer, se o termo vem a propósito. Estava completamente vestida de negro. Vi-lhe uma lágrima que não desmentia a verdade assustadora do sal. Um véu tapava-lhe a testa, descia-lhe pelo nariz, abrindo fendas para os olhos, prendia-se por detrás das orelhas e fazia-lhe desaparecer a boca e o queixo e o pescoço. Quando aterrámos, sorri-lhe, cúmplice.
Posso não ter visto, mas ela sorriu-me de volta."
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