"O primeiro título que me veio à mente foi “a patologia social vista pelos olhos da ciência” para ligar ciência e sociedade.
Embora os cientistas sejam muitas vezes considerados como indivíduos alheados do seu envolvimento social, com pautas comportamentais solipsísticas muitas delas derivadas do seu empenhamento e focalização profissional, outras vezes estão híper-despertos para o que os rodeia. Penso que não é impossível compatibilizar concentração na investigação científica e consciência social e política. Por vezes, a investigação científica, além de ser perscrutação sobre o oculto funciona, também, como denúncia de muitas patologias sociais abrindo as mentes à força esclarecedora da ciência. Nas sociedades actuais, ainda muito marcadas pela força dos dogmas, a luta iluminista da ciência pela erradicação da mentira e do preconceito faz cada vez mais sentido. Não sei se algum dia o primado da ciência conseguirá mandar para o caixote de lixo da história o cortejo obscurantista de todos os preconceitos dogmáticos. Parece que a humanidade necessita mais de mentira que de verdade. A verdade é angustiante; a mentira é pacificadora e anula-nos a capacidade de reflectir sobre os mistérios do universo e da existência humana.
Este artigo consubstancia alguns relatos que a ciência investigou e que implicitamente se constituem como denúncia da patologia social e pessoal emergente.
Uma menina de 9 anos de idade, diagnosticada com o distúrbio de Défice de Atenção e Hiperactividade, vivia com o pai biológico, madrasta e avó paternal após a mãe ter perdido os direitos maternais por abuso infantil. Ao regressar da escola, criança foi punida pela avó, por ter roubado um rebuçado de uma colega da escola e ter negado o ato. Qual foi o castigo? Foi forçada a fazer, no quintal, sprints de 15 metros carregando nas costas paus pesados. Foi-lhe fornecida água para beber. Após mais de 3 horas de esforço sustentado ela colapsou, começou a vomitar e a ter convulsões tónico-clónicas. Foi de emergência para o hospital onde lhe foi diagnosticada coma não-respondente na Escala de Coma de Glasgow. Apresentava ao raio-X edema pulmonar não-cardiogénico tendo sido intubada e ventilada. Os sinais vitais eram os seguintes: peso = 26.3 kg; pressão sanguínea = 110/72; frequência cardíaca = 56 batimentos por minuto. Sódio plasmático = 117 mEq/L; potássio = 3.1 mEq/L; ureia = 9 mg/dL; creatinina = 0.3 mg/dL e gravidade específica da urina = 1.025. Após os exames foi medicada e transferida para um hospital pediátrico. Três dias depois morreu. O exame post-morten revelou edema cerebral maciço com herniação transtentorial (deslocação do úncus no sentido do mesencéfalo) e edema pulmonar.
O que se passou com esta criança? Ela foi vítima de uma encefalopatia hiponatrémica grave. Localizemos cientificamente o problema. O sódio (Na) é mantido no organismo em níveis estreitos (Na sérico = 136 a 145 mEq/L). Estamos perante uma situação de hiponatremia quando a concentração sérica de sódio é inferior a 135 mEq/L. Quanto mais baixa a concentração, mais perigosa é a situação. Clinicamente só se considera estado de hiponatremia quando o sódio sérico é inferior a 130 mEq/L. Verifica-se hiponatremia severa quando a concentração de Na é inferior a 120 mEq/L. Nesta situação, a taxa de mortalidade pode atingir, em adultos, os 50%. Nas crianças pode ser superior.
A encefalopatia hiponatrémica, situação em que o sangue fica diluído em excesso reduzindo dramaticamente o nível de sódio no plasma pode provocar, através da pressão osmótica, a invasão do cérebro pelo fluido plasmático. Esta patologia pode acontecer por ingestão excessiva de água. Na análise de situações idênticas detectamos o caso de 3 crianças que, como castigo, foram obrigadas a beber mais de 6 L de água. Todas desenvolveram convulsões, emesis (vómitos) e coma apresentando-se no hospital com hipoxemia (baixa de concentração de oxigénio no sangue) (PO2 = 44±8 mm Hg), hiponatremia (sódio plasmático = 112±2 mmol/L). Todas mostravam sinais corporais de violência física, mas a história de intoxicação hídrica forçada não foi relatada aos médicos que assim não puderam actuar sobre a causa principal da patologia. As crianças morreram e os familiares foram julgados e condenados.
Fazendo apelo às minhas mais recuadas memórias, lembro-me que quando era muito novo a minha mãe me relatava que “muitos anjinhos” na zona onde vivíamos tinham ido para o céu. Normalmente esses óbitos verificavam-se em estratos sociais muito desfavorecidos onde a fome era endémica. As mães, mal alimentadas, esquálidas e sem leite, recorriam sistematicamente aos biberões de água aquecida para saciar a fome dos filhos. Não me custa nada especular que muitas dessas mortes tenham sido induzidas por excessiva ingestão de água e a consequente encefalopatia hiponatrémica.
O que é que estas informações carreiam de importante para o desporto?
O perigo, para o desportista, da excessiva ingestão de água. A intoxicação hídrica, também conhecida como hiponatremia dilucional, acontece porque a ingestão de água excede a capacidade renal de a excretar. A taxa de excreção renal de um adulto saudável é de cerca de 20 L por dia não ultrapassando 800-1000 mL/hora. Quando se ingere água acima deste valor entra-se numa situação de hiponatremia hipervolémica. Em maratonistas e ultramaratonistas a incidência de hiponatremia associada ao exercício (HAE) é elevada (>10%). Embora, normalmente, a situação de hiponatremia seja ligeira ou moderada e facilmente corrigida por intervenção terapêutica pode, em alguns casos mais severos, conduzir a situações fatais.
A situação de HAE pode derivar da conjugação de uma série de fatores. Assim, adicionalmente à ingestão excessiva de fluidos pode-se verificar o aumento da secreção de hormonas antidiuréticas, e.g. vasopressina, que conduz à retenção de fluidos, redução da produção de urina o que contribui para a diluição do sódio plasmático. Acresce que a secreção não-osmótica de arginina vasopressina como resposta ao stresse neuro-endócrino induzido por rabdomiólise pode ser uma causa potenciadora da secreção inapropriada da hormona antidiurética induzindo hiponatremia e eventual paragem cardíaca e edema cerebral.
Recentes episódios fatais no treino de tropas de elite portuguesas foram mal explicados e direcionados para a incúria dos instrutores quando a resposta aos casos letais pode estar relacionada com o balanço hídrico e os consequentes desvios osmolares que podem induzir situações de falência orgânica. Muitas situações de colapso orgânica não têm uma causa única e podem resultar da conjugação de factores diversos como choque de calor, hiponatremia, hipoglicemia, colapso associado ao exercício nomeadamente por falência cardíaca e cãibras musculares.
No desporto, nomeadamente nos esforços de longa duração, não raras vezes se verificam situações de desregulação hídrica e eletrolítica. Após uma ultramaratona de 161 km cerca de 6% dos corredores estudados (12) estavam hiponatrémicos com concentrações plasmáticas de sódio variando entre 131-134 mmol/L. Verificou-se que os atletas menos experientes apresentavam superior tendência para desenvolver hiponatremia e apresentar níveis mais elevados de CK que é um biomarcador relacionado com a taxa de destruição tecidular.
Num estudo que envolveu cerca de 200 atletas de esforços de ultraendurance – natação, ciclismo de estrada, ciclismo de montanha e corrida, 12 (6%) desenvolveram hiponatremia associada ao exercício. Alguns estudos com triatletas Ironman verificaram taxas de prevalência de hiponatremia até 29%.
Atletas de modalidades desportivas de ultraendurance que entrem em situação de hiponatremia estão mais sujeitos a desenvolver rabdomiólise induzida pelo exercício com elevadas taxas de creatina quinase um forte indicador de destruição muscular.
Importa referir que a hiponatremia associada ao exercício pode induzir, em alguns casos, situações de falência orgânica, normalmente relacionadas com excessiva ingestão de fluidos. Contudo, a resolução do problema não é fácil, pois foi verificado que mesmo com a ingestão de sódio durante os esforços prolongados muitos dos problemas relacionados com o exercício – hiponatremia, cãibras musculares, desidratação, náuseas e vómito não são evitados.
Parece que mesmo com níveis de treino equivalentes uns atletas têm superior tendência a desenvolver hiponatremia que outros. O controlo rigoroso do treino em situações diversificadas de stresse é condição sine qua non para se evitarem casos fatais no desporto e em outras atividades humanas."
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