"Quando um estudioso sério faz um exame crítico da cultura ocidental, das suas origens, do seu desenvolvimento, das suas tendências, do seu significado e valor, em todos os momentos da História da Cultura Ocidental o cristianismo está presente como elemento substancial.
Acentuemos, sem receio, que o cristianismo, com as qualidades e os defeitos dos homens que dizem vivê-lo, é uma herança que enforma as instituições do nosso direito, a imaginação dos nossos escritores, o rigor dos nossos cientistas e as raízes da nossa ética. Pode dizer-se mesmo que a Europa, no que de mais autêntico ela tem, nasce da admiração fervorosa pela mensagem cristã. O próprio Augusto Comte e o seu notável discípulo Emílio Littré reconheceram na Idade Média uma “obra política da sabedoria humana”, precisamente pelo monoteísmo da sua mensagem político-religiosa. A meu juízo, para imortalizar a Idade Média, a Divina Comédia, a Canção de Rolando, a Suma de S. Tomás, S. Alberto Magno (físico, botânico e naturalista), a Opus Magnum de Rogério Bacon (1214-1292), os estilos românico e gótico – a meu juízo, para imortalizar a Idade Média, basta citar estes homens e estas obras. Augusto Comte, no seu Cours de Philosophie Positive nota, na Idade Média, “um profundo sentimento de dignidade, de respeito, de elevação, pela pessoa humana” que o introdutor do positivismo filiava no sistema católico de clara distinção entre o poder político e a hierarquia religiosa, proclamando assim uma incontroversa autonomia da moral e da religião, em relação a qualquer sistema político. O conceito de “pessoa humana” é, nitidamente, de origem cristã, pois que defende o respeito e o culto pelo “ser humano”, antes e acima das leis e dos decretos régios e governamentais. À luz do Evangelho, em cada um de nós, há uma vida moral independente do próprio Estado.
O cristianismo é, de facto, a matriz da civilização e da cultura europeias. Não se estranhe por isso que, no Vaticano, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, sob sugestão do Papa Francisco, ocupe uma boa parte da sua reflexão, procurando abrir o desporto à mensagem do Evangelho. Desta reflexão nasceu um documento, Dar o Melhor de Si (Paulinas Editora, Lisboa, 2018) com prefácio, em forma de carta aberta ao Cardeal Kevin J. Farrell, Prefeito do Dicastério acima referido. São palavras do Papa: “O desporto é um lugar de encontro, em que pessoas de todos os níveis e condições sociais se unem para alcançar um objectivo comum. Numa cultura dominada pelo individualismo e pelo descarte das gerações mais jovens e dos mais idosos , o desporto é um âmbito privilegiado, em torno do qual as pessoas se encontram, sem distinção de raça, sexo, religião ou ideologia e onde podemos experimentar a alegria de competir para alcançar juntos uma meta, fazendo parte de uma equipa em que o êxito ou a derrota são partilhados e superados. Isto ajuda-nos a pôr de parte a ideia de conquistar sozinho um objectivo, centrando-se em si mesmo”. Portanto, para o Papa, no desporto, não se desenvolve um indivíduo, para viver uma vida egoísta de paixões, fazendo dos seus interesses o centro de tudo e de todas as coisas e… acabar escravo dos bens passageiros que o “marketing” e a publicidade lhe oferecem, para o manipular. Para o Papa, o desportista não se confunde com um indivíduo, porque é uma pessoa! E aprende isto mesmo, no desporto, que deverá transformar-se num veículo de formação. Escutemos, uma vez mais, o Papa Francisco: “Por isso, é necessária a participação de todos os atletas de qualquer nível e idade, para que os que fazem parte do mundo do desporto sejam um exemplo em virtudes como a generosidade, a humildade, o sacrifício, a constância e a alegria”.
Por fim, o Papa sublinha o papel do desporto como meio de missão e santificação: “O desporto é uma fonte riquíssima de valores e virtudes, que nos ajudam a melhorar como pessoas. Como o atleta durante o treino, a prática desportiva ajuda-nos a dar o melhor de nós, a descobrir sem medo os nossos próprios limites”. Por seu turno, o Documento Dar o melhor de si começa por mostrar o seu tronco original: “Hoje em dia, a universalidade da experiência do desporto, a sua força comunicativa e simbólica, as suas grandes potencialidades educativas e formativas são reconhecidas e evidentes. O desporto tornou-se um fenómeno de civilização, que habita de pleno direito na cultura contemporânea, permeando os estilos e as opções de vida de muita gente. Isso impele-nos a repropor a interrogação retórica de Pio XII: Como poderia a Igreja desinteressar-se dele?” (p. 10). E insiste, na página seguinte: “O magistério da Igreja apela continuamente à necessidade de promover um desporto para a pessoa, capaz de dar sentido e plenitude à vida, capaz de valorizar integralmente a pessoa, o seu crescimento pessoal e moral, social, ético e espiritual. O interesse da Igreja pelo desporto concretiza-se numa presença pastoral variada e difusa, tendo como ponto de partida e como fim o interesse do ser humano”. Por isso, não tem sentido o “desporto pelo desporto”. Sempre que o desporto não é meio e o ser humano não é fim, ou seja, sempre que não se põe o desporto ao serviço da eminente dignidade da pessoa humana, é evidente que a prática desportiva para pouco mais serve do que para adormecer as pessoas à recusa da sociedade injusta estabelecida. A clara noção da dignidade e independência do ser humano deve ressaltar, numa sociedade moderna, ou hipermoderna (Gilles Lipovetsky), da prática desportiva e, afinal, de tudo o mais que seja verdadeiramente humano. Por isso, a Igreja não defende “um desporto cristão, mas uma visão cristã do desporto”, a qual acrescenta à ética desportiva habitual a certeza da filiação divina dos desportistas pois que, enquanto pessoas, são filhos de Deus. E, assim, é o desporto que é ordenado para os interesses eternos da pessoa humana.
É esta a definição de desporto que o Dicastério propõe: “O desporto é uma actividade física em movimento, individual ou de grupo, de carácter lúdico e competitivo, codificado mediante um sistema de regras, que gera uma prestação confrontável com outras, em condições de iguais oportunidades” (p.23). Segundo o que venho estudando, há 40 anos, o desporto é, de facto, um dos aspectos da motricidade humana, com seis elementos essenciais: jogo, movimento, agonismo, transcendência, instituição e projecto. E com duas palavras indispensáveis: movimento e transcendência. José Tolentino Mendonça escreve, com a alma toda, como é seu hábito, no seu último livro, Elogio da Sede (Quetzal, Lisboa, 2018): “Jesus sabe que um simples copo de água não é banal, não é apenas isso. Esse gesto dialoga com dimensões profundas da existência, porque vai ao encontro daquela sede que está presente em todo o ser humano, que é sede de relação, de aceitação e de amor”. Para mim, é evidente que esta sede, esta vontade de transcendência, que em nós habita (transcendência de toda a complexidade humana) é a mais elevada expressão de humanidade, pois que funda a dignidade e valor do homem, na superação dos seus limites, dos seus vícios, das suas imperfeições. Verdadeiramente, fazer desporto deverá ser isto mesmo: uma tentativa, com a ajuda dos colegas e dos adversários, de superação dos nossos limites, dos nossos vícios, das nossas imperfeições. Mas vale a pena voltar ao Papa Francisco: “Quando o desporto é considerado apenas segundo parâmetros económicos, ou de consecução da vitória a todo o custo, corre-se o risco de reduzir os atletas a mera mercadoria lucrativa” (in Elogio da Sede, p. 51). Ora, o Desporto, como Educação, como Saúde, como Espectáculo, como Cultura da Inclusão, do Encontro e da Paz é bem mais, sem as dispensar, do que Economia e Finanças. A Igreja Católica (e daqui, na minha modéstia, a saúdo, por isso) está a ocupar-se, com rara finura, do “fenómeno desportivo”. Vai nascer um desporto novo?"
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