"O segredo da democracia está, acima de tudo, na acreditação das válvulas de segurança que controlam o poder político, com a justiça à cabeça
O grande segredo da vitória dos modelos democráticos (de inspiração republicana e liberal) depois da tragédia europeia da II Guerra Mundial fundou-se manifestamente na ligação parlamentar e executiva das escolhas populares. O cidadão votante apreendeu que o sentido maioritário tinha expressão - ainda que com diferentes métodos de apuramento e reflexos conjunturais - em presidentes, em deputados, em governos, em representantes regionais, em operacionais autárquicos. Por outras palavras, interiorizou que a sua participação na gestão do “bem comum” ia para além da participação eleitoral e se estendia às decisões vitais da sociedade em que se inseria e das quais dependia. A liberdade implicou compromisso e assunção, conferidos pelo nexo de representação política nos eleitos e nos designados. Essa consistência do poder maioritário veio, por outro lado, banir os estados de excepção, os golpes militares, as situações de força maior que desafiavam a legalidade normativa e a normalidade institucional. Veio tornar seguro o sistema, num edifício de vasos comunicantes entre a rua e o poder que permitiu a ascensão de um Estado social de direito na Europa, a competitividade económica, a construção da CEE, o abate do Muro de Berlim e a aproximação dos povos de leste. Essa representação política passou a ser o baluarte do crescimento, da estabilidade e da cidadania. E o apoio essencial para a certificação e a diversificação dos direitos e das garantias a um número potencialmente ilimitado de pessoas (o primado da universalidade), desde que assistidas pelo financiamento dos bens e dos serviços que alimentam a resposta às expectativas. É neste difícil trapézio, por isso, que se encontram as crises e as rupturas da Europa dos últimos 20 anos.
Diga-se, porém, que essa legitimação só é certa se for assegurada pela implementação de uma arquitectura de equilíbrio com o poder extrapolítico (mesmo que internamente). Acima de tudo, trata-se de assegurar plataformas de vigilância e fiscalização endógenas e de heterofiscalização do exercício do poder atribuído pelo “povo”. Este termina a função no momento do voto; outros terão de garantir a prevenção e a punição do risco de despotismo e de autocracia. A separação de poderes e, acima de tudo, o exercício exógeno do poder judicial está (também, mas não só) ao serviço dessa autotutela deste sistema democrático complexo que, no mais simples, visa proteger os representados (todos nós, portanto) e o interesse global (ou “público”, num sentido mais restrito e parcial).
No entanto, quando se trata do poder judicial garante, há uma grande diferença para o poder político garantido: não estão a justiça e os seus agentes ao serviço de qualquer agenda - ainda que, como agora se diz e se pratica, comunicacional - de satisfação ou de concretização dos interesses (mesmo que supostos) dos representados e garantidos. O que é compreensível para a conquista e a manutenção do poder político não é aceitável nem saudável no poder das autoridades judiciárias, enquanto baluarte do sistema. Se assim não for - a não ser em casos extremos de alarme social -, está aberto o caminho para a demagogia, para uma espécie de tirania, para a opressão e para uma certa forma de exclusão. Em suma: para se concretizar o risco de adulteração dos princípios democráticos da igualdade e da legalidade. E, pelo caminho, para se ampliar a voz dos arautos dos populismos radicais e das jurisdições de pelourinho, que têm na ressonância mediática a viabilidade do seu programa e a caução de uma ideologia perigosa para a credibilidade das válvulas de segurança do sistema. Em conclusão, estará feito o desenho fatal para, seguindo a cabeça de Camus, falecer a conciliação entre liberdade e justiça.
Por estes dias, olhando para o nosso país “judicial”, talvez seja útil ponderar nisto e tomar medidas."
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