"Se amarmos verdadeiramente o futebol e se não formos fanáticos do Benfica ou do Sporting a ponto de detestar o FC Porto mais do que qualquer coisa no Mundo, não podemos ter gostado da derrota histórica encaixada pelos dragões, esta semana, face ao Liverpool. A derrota dos duplos campeões da Europa tem múltiplas explicações, a encontrar entre as ausências de Felipe, Danilo e Aboubakar, as limitações técnicas do líder da liga portuguesa, a táctica monocórdica de Sérgio Conceição ou a abissal fraqueza de José Sá. Mas a razão profunda deste falhanço está num movimento de fundo que torna mais ricos e mais fortes os membros dos quatro maiores campeonatos e vai excluindo lentamente todos os outros desse mundo.
O Anderlecht, o Glasgow Rangers, o Ajax, o Celtic e todos os antigamente grandes clubes da Europa de Leste já desceram para a segunda divisão continental. É isso que agora está para suceder com os grandes clubes portugueses. Resistiram durante muito tempo graças aos TPO [“Third Party Ownership” – a partilha de passes com fundos de investimento], ao seu savoir-faire e a algum sucesso. Ainda têm o direito de se qualificar para a fase a eliminar da Liga dos Campeões. Mas quando as coisas se tornam verdadeiramente sérias, há as multinacionais e o resto do Mundo. FC Porto, Sporting e Benfica fazem já parte dessa segunda classe. Como todos os clubes franceses, à excepção do Paris Saint-Germain e, uma em cada duas épocas, o AS Mónaco. Dois clubes que são, eles próprios, excepções. O PSG baseou o seu desenvolvimento na chegada massiva de capitais vindos do Qatar. O AS Mónaco apoia-se no estatuto fiscal de excepção do principado. Durarão tanto tempo quanto estas particularidades lhes permitam manter-se à tona.
O futebol pertence cada vez mais a uma casta e isto também é válido para quem gosta dele. Em França, para ver a Liga dos Campeões, é preciso ser assinante de dois canais diferentes: Canal + e BeIN Sports. E é necessário juntar um terceiro (Altice) para ver a Premier League. Resultado: houve mais gente a ver o Europeu de futsal, uma modalidade confidencial em França, do que os grandes jogos da Premiership. Idem para o biatlo, transmitido gratuitamente no canal L’Équipe e visto durante todo o Inverno por centenas de milhar de franceses que deixaram de ter acesso a um só jogo da Ligue 1 de futebol.
A corrida aos lucros conduz, portanto, à segregação dos dois lados. Nos actores, tal como nos espectadores (e nos media, também), há os eleitos e os outros. A universalidade do futebol, que permitiu o seu extraordinário desenvolvimento, é uma recordação da natureza do jogo, que entretanto se transformou num clube exclusivo, à moda da NBA.
Tanto melhor para o biatlo. Tanto melhor para o futsal, um desporto cheio de futuro. O futsal é espectacular, vem ao encontro do gosto de uma nova geração e constitui um viveiro de talentos ainda muito mal explorado em França (os Bleus eram a única equipa amadora qualificada para o Euro). Ensina à nova geração para que serve a sola, aquela parte da sapatilha de que os mais velhos nunca se serviam. A vivacidade e o jogo em espaços reduzidos são permanentes. E é precisamente esta capacidade para decidir depressa e bem que faz a diferença ao mais alto nível.
Frente aos ecráns para ver Portugal ganhar o seu primeiro título em futsal, um ano e meio depois do seu primeiro título em futebol de onze, a maioria dos telespectadores franceses foi conquistada por este jogo decididamente moderno e que, aos olhos dos adultos, apresenta uma vantagem que não deve ser negligenciada num país como a França, de inverno rigoroso: joga-se num pavilhão, portanto abrigado, durante todo o ano. Depois, joga-se a cinco. Basta um grupo de amigos para montar uma equipa. Uma das revelações do campeonato de França de futebol, Karl Toko-Ekambi, jogou futsal durante mais de um ano com alguns amigos, na adolescência, quando uma lesão num joelho o tornou desgostoso do futebol de onze. O avançado do Angers voltou ao campo grande, mas foi o futebol de cinco que o salvou.
Por enquanto, em França, o futebol de cinco é visto como o futebol dos bairros, dos excluídos. A exposição mediática vai ajudá-lo a deixar esta condição, sobretudo se continuar a ser um desporto onde o espectador se aperceba bem da igualdade das chances. No seu primeiro jogo no Europeu, os amadores franceses arrancaram um empate (4-4) contra o espantalho espanhol. A prova de que esta é uma competição verdadeiramente aberta a todos, onde qualquer equipa pode vencer qualquer outra. Foi também isso que permitiu ao futebol tornar-se uma actividade imensamente popular. Ao afastar-se, pouco a pouco, deste elemento do seu DNA, o futebol assume o enorme risco de se afastar também do que faz o seu sal: ser, primeiro e antes de mais nada, um jogo."
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