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terça-feira, 7 de junho de 2016

O monumento entre a Prisão e a Cidade do Futebol

"À beira do forte de Caxias onde Cândido de Oliveira foi torturado há um rotunda, é lá que o NAM o quer colocar como mais do que símbolo à resistência. Fique a saber como e o que ele penou depois de ser preso pelo seu próprio guarda-redes...

Perante a ameaça de Hitler invadir Portugal, criou-se, em Dezembro de 1940, com o patrocínio dos SOE, serviços secretos britânicos, a Rede Shell. Destinada a acções de espionagem (e eventualmente de guerrilha...) contra os nazis, Cândido de Oliveira tornou-se um dos seus principais agentes, o agente PAX. Aplicou à selecção o WM que Chapman inventara no Arsenal - e foi assim que à entrada de 1942 levou Portugal a brilharete: ganhou à Suíça, nas Salésias, por 3-0. 51 dias depois, às cinco de madrugada de 28 de Fevereiro, brigada PVDE entrou de restolhada na casa onde vivia e levou-o, preso, para Caxias.
Durante mais de 12 horas interrogaram-no sobre nomes e ligações, ajudas e arrimos - e Cândido disse anda. Partiram-lhes os dentes, racharam-lhe os lábios. Levou murros e pontapés - e ainda com um banco na cabeça. Pela sala da tortura passou António Roquete, que fora seu guarda-redes no Casa Pia AC e na selecção olímpica - e que, em 1930 se tornara agente da polícia política, ainda não se chamava PIDE, chamava-se PVDE.
Levantou-se rumor de que fora António Roquete, quem mais barbaramente o agredira - que não, revelou-o Maria Claudina Guerreiro Nunes, sua sobrinha:
- Era um rapaz muito pobre, o Roquete, o meu tio protegeu-o, garantiu-lhe refeições, ajudou-o a vestir-se, enfim fez com ele o que fazia com todos os casapianos que precisavam do que fosse... É verdade, que apesar disso, não se portou bem quando Cândido foi preso. Mas bater-lhe parece que não bateu. De qualquer forma, posteriormente, Roquete tentou uma aproximação, mas o Cândido recusou...

Cândido, a tortura em Caxias...
Ainda de Caxias, Cândido de Oliveira enviou exposição a Mário Pais de Sousa, ministro do Interior, que era mais do que um lamento, é imagem da barbárie que se praticava:
- Só agora tive conhecimento da razão das torturas, morais e físicas, a que fui submetido: a escuridão total, a cela húmida e sem ar, sem luz e sem janela, o facto de ter sido obrigado a viver como um animal e a comer no chão durante dez dias inteiros, impedido de receber cuidados médicos apesar de ter um dente partido e ter sido forçado a usar o mesmo lençol durante esse mesmos dez dias. A polícia pensava que eu era um comunista, um traidor que queria derrubar o governo, mas não, fui apenas um patriota que desejava combater qualquer invasor do seu país...

Obrigatoriamente, o Cândido
À sombra do presídio onde, então, penava Cândido de Oliveira está, agora, a Cidade do Futebol. Entre um espaço e outro há rotunda - e é lá que João Maria de Freitas-Branco, vice-presidente do NAM, Movimento Cívico Não Apaguem a Memória, quer que se coloque monumento que seja mais do que uma homenagem a Cândido:
- O NAM foi criado em 2005 com o objectivo de manter viva a memória do que foi o Estado Novo e o período da Revolução e da transição para a Democracia. É uma instituição independente que acaba de editar resenha histórica dos seus 10 anos de actividade, da autoria de Raimundo Narciso, seu presidente do NAM. Vendo em marcha a construção da Cidade do Futebol apresentei em reunião do NAM a proposta para que se fizesse monumento que estabelecesse um ponto de união entre aquilo que é a Cidade do Futebol virada para o futuro e o velho forte de Caxias, símbolo do passado ditatorial, da repressão, do Mal, do mal institucionalizado que foi o Estado Novo - e além disso que evoque o histórico momento da libertação dos presos políticos na madrugada de 27 de Abril de 1974. A figura de Cândido de Oliveira impôs-se quase como uma obrigatoriedade, dada a intenção de estabelecer ponte entre a resistência anti-fascista e a actividade desportiva. Quem melhor para isso? Cândido reúne numa só pessoa um conjunto de qualidades, de competência, de acções no seio da sociedade que fazem dele a figura mais importante da história do futebol em Portugal. O admirado Eusébio é caso diferente. Cândido não se esgota no futebol, nem sequer no desporto. vai para além disso, simboliza o intelectual do desporto, há na sua prosa jornalística e não só uma dimensão literária.

O amargo silêncio da FPF
A ideia acolheu-se com entusiasmo, ao NAM, por si só, falta capacidade para lhe dar andamento:
- Razão porque estabelecemos dois contactos institucionais privilegiados. Um, em primeiríssimo lugar com a Câmara de Oeiras. O presidente Dr. Paulo Vistas revelou de pronto todo o empenho possível na concretização da obra. Também todas as forças políticas representadas na Assembleia Municipal mostraram simpatia à ideia. O segundo contacto foi com a FPF e aí...
Freitas-Branco calou-se por um instante, percebendo-se-lhe, amargo, o silêncio:
- O contacto com a FPF foi em Março e é com alguma tristeza que tenho de dizer que ainda não tivemos nenhum eco da sua reacção...
Custo? Ainda não se sabe, o NAM não tem dinheiro...
José Maria de Freitas-Branco não faz (ainda) ideia precisa do que pode custar a colocação da estátua de Cândido de Oliveira no Monumento entre a Prisão de Caxias e a Cidade do Futebol:
- Não há qualquer orçamento, de momento. Porque nós, o NAM, defendemos que deve realizar-se um concurso de ideias. Não queremos impor nada no plano da criação artística. Aliás, aproveito para revelar que motivei um jovem escultor meu conhecido, Fernando Roussado, a abraça-lo e ele já me deu a conhecer o seu projecto. Trata-se, porém, de iniciativa pessoal, o NAM não apresentou nenhuma proposta de autoria. Eu simpatizo com a ideia de explorar o olhar criativo de um artista já nascido no Portugal de Abril, mas repito: sendo o NAM uma instituição sem fins lucrativos, não temos capacidade financeira para avançarmos sozinhos, por isso nada se orçou ainda...

Se o seleccionador olímpico era ele...
Se a FPF não entrar no apoio financeiro ao projecto, o COP pode entrar? Já entrou doutro modo...
- Cândido de Oliveira não foi apenas jogador e treinador de futebol, também fez râguebi, atletismo e luta, da sua cabeça saiu a ideia da Volta a Portugal em bicicleta, era o seleccionador da equipa que nos Jogos Olímpicos de 1928 ficou à beira de ganhar uma medalha...
- ... E como jornalista, além de fundador de A BOLA, foi um dos mais notáveis que Portugal teve. Gosto de acentuar que o jornalismo é, à sua maneira, uma forma de escrita literária, nele era sempre assim...

- Pois, mas o que eu lhe queira perguntar era se, atendendo ao facto de Cândido de Oliveira estar muito para além do futebol não deveria envolver neste projecto o Comité Olímpico também...
- O Prof. José Manuel Constantino logo que soube do projecto do NAM mostrou o maior entusiasmo e interesse nele e, aliás, tem-me ajudado muito nesta batalha pela sua concretização...

- Já lhe falou na possibilidade de o COP se envolver financeiramente no projecto se a FPF não o quiser fazer?
- Não, nisso não falámos.

- Outra hipótese para o pagar é o envolvimento do governo - ou não?
- Eventualmente, embora ainda não tenha sido feita abordagem nesse sentido porque o NAM tem a correr outro projecto que envolve o governo, tem incidência sobre o espaço da prisão da Caxias, está a ser negociado com o Ministério da Justiça e não quisermos sobrepor projectos. Mas, claro, não está posta de parte a hipótese de se tentar o envolvimento do governo, se necessário...

- Não deixa de ser uma obrigação moral de qualquer governo...
- Concordo. Muito se disse já sobre o futebol como elemento de alienação. Sem o querer negar, gostava de enfatizar o facto de a prática do jogo, bem como o espectáculo futebol, com a sua enorme dimensão cultural, estética, sócio-antropológica, política, poder, e dever, constituir real factor de educação cívica no seio da sociedade. O nosso bom Cândido compreendeu isso e por isso merece de todos nós a homenagem que o NAM quer fazer...

Sem a FPF, a memória atraiçoada...
José de Freitas-Branco garante: o projecto não é megalómano e os custos não são exorbitantes.
- Se a FPF chutar para canto a ideia o Monumento na Cidade do Futebol...
- Achamos que o projecto, pela sua filosofia, o seu simbolismo, a ideia do NAM deve ser financiada pela autarquia e pela FPF. O futebol é hoje uma indústria que move milhões e para a FPF creio que não seria um investimento significativo, porque não estamos a falar de um projecto megalómano, que tenha custos exorbitantes...

- Não teme, porém, que no silêncio que tem recebido da FPF possa haver algum indício de contravapor - ou mesmo de uma forma de negação em particular na ideia?
- Não posso acreditar nisso.

- Porquê? Porque, fazendo-o, a FPF estaria a atraiçoar a memória de Cândido de Oliveira, a sua figura, o que ele representa?
- Julgo que não há nenhuma decente direcção da FPF que possa não simpatizar com a ideia de ter à entrada da Cidade do Futebol um monumento evocativo de Cândido de Oliveira e dos valores nele encarnados - independentemente das posições políticas que hoje se possam ter. Cândido de Oliveira é, aliás, figura digna, consensual, uma personalidade marcante no Portugal do século XX, um residente empolgado sem conotação partidária, um incansável lutador pela Liberdade e pela Democracia. Por isso, sofreu, por isso pagou preço que se sabe. E, 'last but not least', ainda não recebeu a devida homenagem nem o reconhecimento nacional que merece.
Do 'pântano da morte' à rotunda
O dinheiro que o governo de Salazar lhe roubou e a desculpa da doença que o desviou do Brasil...

Depois de quatro meses preso em Caxias, a 20 de Junho de 1942 Cândido de Oliveira foi embarcado no paquete Mouzinho com destino ao Tarrafal, construído em Cabo Verde à imagem de campos de concentração nazis. Por mais de uma vez, a embaixada inglesa exigiu ao governo de Salazar que o libertasse. Sem resposta, os SOE idealizaram raptá-lo de lá.
Na primeira vez gizaram plano que previa recurso a um barco francês - mas como Lionel Oliveira, o irmão de Cândido, era comandante de navio mercante, o Alfarrarede, ofereceu-se para ser ele a fazê-lo. Decidiu-se que a operação largasse cabo a 22 de Fevereiro de 1943, horas antes, por indicação do embaixador inglês foi «estrategicamente suspensa».

Plano para a fuga do Tarrafal...
Tentou-se outra, entretanto. Que, com a ajuda de um guarda, Cândido de Oliveira fugisse do campo do Tarrafal a nado do forte, a caminho dum salva-vidas que se lhe lançasse, pela calada da noite, sendo, depois, os dois resgatados por um navio da Royal Navy - deixando o bote com o casco para cima sugerindo que tinham morrido afogados. Cancelou-se também - porque Salazar decidira abrir os Açores aos Aliados e prometera aos ingleses soltar todos os envolvidos na Rede Shell, ao perceber que a sorte da guerra se inclinara para os Aliados...
Do Tarrafal voltou, assim, Cândido de Oliveira a 31 de Dezembro de 1944. Levaram-no ao Júlio de Matos - para «quarentena da febre amarela» e «análise de estado psíquico». Após seis dias no referido para hospital foi transferido para o «Depósito de Presos de Caxias». Para cada mês na cadeia exigiram-lhe 1500 escudos para «pagamento do quarto e da alimentação» (sim, os presos políticos tinham de suportar o cárcere e o resto...) e só a 27 de Maio o restituíram a liberdade condicional.
Quando o deportaram tinha 35 contos de economias, o Estado apoderou-se delas por achar que era «dinheiro da espionagem». Salazar deu-lhe a soltura mas manteve-lhe a exoneração de Inspector Geral dos Correios. «Arruinado» e «sem trabalho», sugeriu ao SOE que lhe arranjasse «qualquer coisa no Brasil». Arranjaram - e marcaram-lhe viagem para os primeiros dias de 1945. Não partiu, queixou-se de problemas de saúde. Não, não foi bem por isso que não partiu, foi porque outro sonho se lhe ateara, noutro sonho de envolvera - com Vicente de Melo e Ribeiro dos Reis na fundação de A BOLA.

Auschwitz de via reduzida
Do Tarrafal saíra, com livro na cabeça. Escreveu-o, magistral, na denúncia dos seus horrores - é O Pântano da Morte. (Obviamente só foi publicado em 1974). Numa das suas páginas, ao Tarrafal chamou Auschwitz de via reduzida. Arrepiante é o que conta sobre a famosa Frigideira e não só... (Vá lá, Cândido não passou por suplícios como outros passaram, a ele tiveram-no preso em «regime especial», fora do «arame farpado». Davam-lhe uma pequena área para passear e só era fechado das 8 da noite às 5 da manhã...)

O simbolismo da rotunda
Perguntando-lhe se, por um acaso (ou não...), a FPF não participasse no financiamento do monumento com Cândido de Oliveira na rotunda da Cidade do Futebol, isso o feria de morte (e lhe atraiçoava a memória) Freitas-Branco afirmou:
- Eventualmente. Porém, quero acreditar não haver tão grande risco, em face do empenhamento que tenho observado da parte do Dr. Paulo Vistas, presidente da Câmara de Oeiras, e do consenso entre as forças políticas na autarquia. Mas acredito que a FPF não deixará de se associar ao que é fundamental: fazer-se num local carregado de simbolismo, a homenagem a uma personalidade singular, a Cândido de Oliveira. Fazendo-o, estamos a enaltecer a atitude e o espírito pró-democrata, pré-liberdade, pró-desenvolvimento, pró-progresso, celebrando, do mesmo passo, o gesto libertador que ocorreu naquele local, em 1974, e que marca a história do Portugal contemporâneo."

António Simões, in A Bola

3 comentários:

  1. O António Simões cada vez me surpreende mais.
    Que grande senhor do futebol.
    Fica a pensar o quão desaproveitado ele foi pelo Benfica.
    Mais vale tarde do que nunca.
    E hoje ele é claramente um dos geandes embaixadores do nosso clube e dos nossos valores.
    Escrever um texto destes não é para todos decididamente.

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    Respostas
    1. Este António Simões é outro!
      Jornalista d'A Bola, responsável pela secção cultural, e pelos títulos mais crípticos do jornal!!!

      Abraços

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    2. Ah tá.
      Assim fica explicado.
      Já estava a achar muita areia na camioneta! :)
      Mas não deixa de ser um grande senhor o nosso António Simões.

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