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segunda-feira, 28 de março de 2016

Elegia de um devoto da igreja Cruyffiana e Maradoniana

"Um dos maiores jogadores / treinadores / pensadores do futebol moderno perdeu o jogo da vida dele: o cancro no pulmão tirou-nos Johan Cruyff, 68 anos. O Expresso pediu ao scout e comentador de futebol Rui Malheiro que explicasse quem foi Cruyff. E pediu bem - veja porquê.

A minha primeira memória de Johan Cruyff remete-me para uma revista “Foot”, de Setembro de 1985, onde João Querido Manha assinava um texto sobre o novo Ajax que buscava o ressurgimento internacional com um conjunto de meninos orientados por uma figura polémica – Cruyff, quem mais podia ser – que se recusava a ter a credencial de treinador, utilizando a pomposa designação de “director-técnico” para se sentar no banco.
Que coisa tão estranha. Tinha 8 anos, nunca tinha visto a Holanda numa grande competição internacional de selecções (o Mundial 1982 e o Europeu 1984 são as minhas primeiras referências) e o Ajax, um clube com o nome do detergente com que se lavava os vidros lá em casa, ganhava títulos internos, mas andava distante das finais europeias, a outra montra pela qual nos chegava futebol internacional no princípio da década de 1980.
Perguntei ao meu tio quem era aquele gajo. Explicou-me que tinha sido “o” futebolista genial da década de 1970, a principal figura da Holanda vice-campeã do mundo em 1974, ano em que venceu a Bola de Ouro, e que se recusara, por ser contra a ditadura militar argentina, a marcar presença no Mundial 1978, aquele dos papelinhos infinitos sobre a “cancha”, em que a Holanda voltou a ser finalista vencida, e parecia desenhado para o seu futebol poético e desconcertante.
Depois, o meu tio também me contou que Cruyff contribuíra de forma decisiva para que o Ajax conquistasse um rol de títulos nacionais e um tricampeonato europeu consecutivo, e da passagem pelo Barcelona, só com um título de campeão nacional, mas plena de futebol arte. O tal futebol total que, mais tarde, compreenderia.
Posto isto, Johan Cruyff, daqui até à eternidade. Fui acompanhando, pelos resumos curtíssimos do “Domingo Desportivo” e pelas notas de futebol internacional à segunda-feira n’“A Bola”, as peripécias de Cruyff e dos seus petizes: Van Basten, Rijkaard, Ronald Koeman, Vanenburg, Bosman, Rob Witschge e Van’t Schip, uns ilustres desconhecidos sub-23 que viriam a marcar a década seguinte do futebol europeu. Foi através daquelas imagens gigantes que acompanhavam o texto de João Querido Manha que tive o primeiro contacto visual com grande parte deles. Outros tempos, difíceis de serem compreendidos para quem cresceu na era do digital.
Não houve conquistas de campeonatos nacionais, apenas de taças da Holanda, até que chegou o grande dia. 13 de maio de 1987. Às 19h15, depois de aguardar ansiosamente pelo término do maçudo “Brinca Brincando”, indiferente à carne que a CEE não enviou, às lutas entre PRD, PS e MDP para convencerem Maria de Lourdes Pintasilgo a assumir a candidatura ao Parlamento Europeu, ou ao adiamento do encontro entre o primeiro-ministro (Cavaco Silva) e o Papa, lá estava eu, acompanhado por um pequeno bloco de notas, agarrado à RTP 1 para ver a final da Taça das Taças entre Ajax e Lokomotiv Leipzig.
O jogo, disputado em Atenas, não ficou para a história pela nota artística elevada, mas aquele 3x4x3 em losango (falta o 1 do guarda-redes, o excêntrico
Menzo, que também procurava, no seu estilo desengonçado, jogar e, como agora se diz, controlar a profundidade, mesmo num tempo em que o guardião podia agarrar a bola após um atraso) do Ajax nunca mais me saiu da cabeça. Menzo na baliza; Verlaat, o libero; Silooy e Boeve, os defesas “de marcação” que, no fundo, eram laterais (e não tinham a estampa física – será a minha única referência a “físico” no meu texto – de defesas centrais); Wouters, o médio de cobertura; Rijkaard e o veterano Mühren, os médios interiores “pensadores”; o jovem Winter, sempre disponível para esticar o jogo, como vértice ofensivo do losango de meio campo, ainda que usufruindo de liberdade para trocar de funções com Mühren; Van’t Schip e Witschge, os extremos vertiginosos; e Marco van Basten, o ponta-de-lança que era apontado como uma das grandes promessas do futebol mundial. O meu exercício, a partir daí, passou a ser o de imaginar como seriam Benfica, FC Porto, Sporting e Rio Ave em 3x4x3 em losango. Um exercício tão difícil como inexequível.
A vitória da Holanda no Europeu de 1988, sob o comando de Rinus Michels, o “avô” do futebol total, tinha muito mais dedo do treinador Johan Cruyff do que seria expectável. É só olharmos para os convocados e para o onze titular, não nos esquecendo que Ronald Koeman, Vanenburg e Bosman, entretanto desviados pelo milionário PSV, também estiveram no exórdio da sua carreira como técnico principal.
O regresso de Cruijff ao Barcelona, curiosamente no verão de 1988, ofereceu-me a hipótese de ter mais acesso aos seus jogos. Primeiro, através da partida de sábado à noite transmitida pela TVE, que se capturava em Vila do Conde com pedacinhos pequeninos de grão no ecrã, e, principalmente, após 1990, altura em que o meu avô me ofereceu uma antena parabólica, cuja rotativa buscava incessante e avidamente todos os jogos do Barcelona. Para um ateu, devoto da igreja Cruyffiana e Maradoniana, aquela passou a ser a missa de todos os fins-de-semana. Até à primavera de 1996, altura em que os jogos do campeonato espanhol já eram transmitidos por canais portugueses (SIC e TVI).
As maiores lições que retirei de Cruyff foram as da valorização da inteligência e da capacidade para tomar decisões do futebolista, e a de retirar o máximo prazer possível de cada segundo do jogo, mantendo-nos fiéis ao que acreditamos: à nossa ideia de jogo, ao nosso modelo de jogo. O resultado é importante, mas está longe de ser tudo.
Devemos saber vencer – aqueles quatro títulos nacionais consecutivos, entre 1991 e 1994, foram épicos, e dois deles com requintes esdrúxulos de malvadez sobre o Real Madrid, assim como as finais ganhas à Sampdoria na Taça das Taças e na Taça dos Campeões Europeus – como também saber perder – aquela final da Champions, em 1994, quando o “Dream Team” da Catalunha é atropelado (0-4) pela sua antítese: o AC Milan de Capello – sem ceder uma vírgula aos nossos princípios. Um idealismo romântico em que a estrutura tática (o tal 3x4x3 losango) não é o ponto de partida, já que até pode ser transformada num 4x4x2 em losango – como o que detonou o Real Madrid, em 1994, por 5-0 – ou num 4x3x3.
Johan Cruyff, que entretanto trocara os maços de cigarros por chupa-chupas, decidiu deixar de ser protagonista no final da primavera de 1996. Seguiram-se duas décadas em que nos ofereceu reflexões sublimes, com mais ou menos polémicas, mas sempre fiéis às suas ideias e aos seus ideais, num namoro ininterrupto com o infinito prazer pelo jogo bonito. Pelo futebol espectáculo.
Foi também um tempo que coincidiu com a democratização – expressão que imagino lhe seja muito grata –, do acesso à informação, o que me permitiu descobrir o Cruyff jogador, confirmando o futebol poético e desconcertante, pleno de rasgo, de técnica, de leitura de jogo e de intensidade cerebral (que capacidade para tomar decisões!), sobre o qual o meu tio me falara, e voltar a olhar o Cruijff treinador com maior distância e muito mais experiência no terreno.
Podemos achar que, para alguém que esteve sempre à frente do tempo, Cruijff deixou os bancos demasiado cedo. Contudo, saiu no tempo certo para continuar a ser olhado como a mente que (melhor) pensou e colocou em prática a mais cintilante ideia de futebol poético-associativo-ofensivo, e, acima de tudo, teve tempo para desfrutar com aqueles que mais amava. Algo que a maior parte de nós, principalmente os que trabalham(os) no (gosto mais do “para o”) futebol, só se apercebe demasiado tarde. Por aqui, vou continuar a insistir com a Paulina que Johan Garcez Rodrigues Malheiro é o nome perfeito para o nosso filho."

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