"Nicolau e Trindade, Trindade e Nicolau, os nomes entraram a par na história do Desporto português: o Benfica-Sporting das estradas e dos caminhos. José Maria Nicolau foi a figura mais emblemática que passou pelos selins e rodas pedaleiras com uma camisola vermelha vestida.
Nicolau não é uma estampa de atleta. É uma Hércules tosco: muito forte mas sem recorte escultural. Não é um espadáudo: tem antes um tronco cilíndrico, um cilindro de enorme diâmetro... Talvez pelo hábito da máquina - nos instantes de absoluto desprendimento é um nada corcunda... Um quase nada: a consequência natural da curvatura sobre o guiador. Nota dominante: um olhar firme, sereno, forte... e franco. Fala com facilidade, naturalmente. O campeão do Cartaxo é uma companhia agradável, e um homem querido na sua terra: é o Nicolau p'rá'qui, é o Nicolau p'rá'colá...
Esta era a figura mais emblemática que passou pelos selins e pelas rodas pedaleiras com uma camisola vermelha vestida: José Maria Nicolau, o émulo eterno de Trindade, de quem Carlos Silveira, o velho repórter da insquecível Stadium, traçava o retracto que publicamos em epígrafe.
Nicolau e Trindade, Trindade e Nicolau, os nomes entraram a par na história do Desporto português, parece terem-se ternado indissociáveis num sprint de gémeos que os entreteve até ao fim das vidas.
Nicolau nasceu no Cartaxo, lá pelos idos de 1919, viria a morrer em 1969, a 26 de Agosto para sermos mais exactos. Tinha uma oficina perto de um lugar chamado Retiro das Curvas e, segundo as crónicas da época, uma alegre casinha tão modesta quanto ele, como cantaria a Milú no Costa do Castelo. Não acreditam, ora leiam: «O herói do Ciclismo nacional habita uma casinha pequena, de porta e janela, muito caiada, com uma sala de visitas que é um brinquedo - e um confidente: muito realçadas, numa exposição onde a mão envaidecida de esposa amiga dispôs em estética risonha, quase todas as Taças e 67 das medalhas ganhas (...)».
Uma carreira de vitórias que se iniciou num célebre Lisboa-Cartaxo disputado a 1 de Setembro de 1929. Chegou em 5.º, mas logo aí se viu que estava fadado para ser um grande. Numa equipa benfiquista na qual se distinguem nomes como Gil Moreira, Julião Pinheiro, António Barata, Carlos Domingos Leal, Manuel Dias Afonso e Artur Dias Mais, Nicolau destacava-se pelo enorme poder físico que exibia e que lhe garantiu a primeira grande vitória, precisamente na Volta a Portugal, que teria em 1931 a sua II Edição. A festa durou semanas. E os seus conterrâneos do Cartaxo foram buscá-lo a Setil levando-o em cortejo até à porta de casa, confirmado também como rapidamente se tornara um caso raríssimo de popularidade.
Casal de bácoros no quintalinho...
São os seus anos de ouro. Entre 1931 e 1934 vence tudo o que havia para ganhar nas provas velocipédicas portuguesas: o Porto-Vigo; o Porto-Lisboa; o Campeonato de Portugal; as 12 Voltas à Gafa; o Lisboa-Bombarral-Lisboa; o Campeonato de Fundo, encerrando com nova vitória na Volta a Portugal. 1935 marca o ano do seu declínio. Assolado por mazelas, que já o tinham impedido, no ano anterior, de participar no 'raid' Lisboa-Paris, desiste a meio da Volta e a marca dos anos deixava em si o seu vinco impiedoso O Hércules perdia a força.
Homem de vida tranquila, registavam-se-lhe os hábitos serenos. Assim como os descrevia Carlos Silveira: «Às 7.00 horas levanta-se. Toma café com muito leite e vai trabalhar até ao meio-dia. Almoça geralmente uma fornida bacalhoada com batatas e volta à lide até às 19.00 horas... Às 23.00 horas, pouco mais, pouco menos, está deitado. Na época dos treinos, dia sem dia não, faz os seus 50 quilómetros. (...) Gosta de vir a Lisboa. Chega a fazer o trajecto de ida e volta no mesmo dia... e sempre de bicicleta. Nicolau é homem caseiro. Não é modesto a fingir: mas gosta do seu quintalinho, onde há pombos brancos, coelhos, um casal bácoros... e alecrim. Há dias comprou uma motocicleta, lançando o pânico entre os seus adeptos. 'Ciclista de moto é homem ao mar'. Afinal vendeu-a logo. E estejam os admiradores sossegados: não pretende comprar outra».
Corriam desse modo os dias de glória de José Maria Nicolau. Que nunca realizou, no entanto, o sonho da Volta a França. Onde encontraria o seu ídolo, o francês Leduc, e as grandes estrelas de então, Falk Hansen, Scherens, Guerra, Pelissier... Sem sonho mas com lembrança. Que aqui fica. Mais uma..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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