"Adormeci perto das 15 horas.
Só me lembro-me de ouvir alguém dizer “vamos assistir à última dança de…” e logo entrei em hibernação. Pouco depois, começava o meu sonho perfeito numa tarde cinzenta de inverno.
A voz distante dizia “última dança de Cristiano Ronaldo, a ligação Di Maria-Ronaldo” e o outro acrescentava “Falta-lhe o Santo Graal, o título de campeão do Mundo”.
Ah, finalmente percebi onde estava, nas profundezas da minha dormência. Com Portugal na final do Mundial, contra a França, era aí que eu estava? O cenário era todo em tons de azul, debatia-me no meu subconsciente contra aquela realidade virtual, mas o futebol belo e articulado, espectacular, daqueles jogadores celestes, desde o primeiro minuto, vulgarizando os convencidos dos franceses, acabou por prevalecer sobre a minha convicção: se não os podes vencer, junta-te a eles.
A nossa equipa em 4x4x2, Cristiano e Alvarez na frente de ataque. Um grande plano enche-me o lobo parietal e a voz afirma que já bateu o recorde de melhor marcador do seu país em jogos do Mundial e é a partir de hoje também o jogador com mais partidas em campeonatos do Mundo.
Os meus olhos não param, aquele futebol é um regalo para os sentidos. Os cientistas chamam-lhe sono REM (movimento rápido dos olhos) - muito mais rápido que a reação às firulas de Di Maria, à pauta de Enzo Fernandez, ao drible e passe de… Cristiano: “franceses com dificuldades tácticas perante o esquema de Scaloni”, diz a voz.
Vinte e um minutos, Di Maria na ponta esquerda dribla Dembelé e “é penalti”, grita estridente. Cristiano pega na bola, coloca-a na marca, pode concretizar o seu sexto golo e entronar-se no melhor marcador do Mundial, quarto de “penaldo".
“Siiiiiiii”.
Trinta e seis minutos, começa tudo num passe espectacular de Cristiano para Alvarez e deste para Di Maria, muito rápido, agitado a fazer-me virar para o outro lado. Acho que dei um salto no divã.
“Siiiiiiii”.
No meu embalo estou nas nuvens, sorrio a quem me explicou que sonhar “enriquece a nossa vida, torna tudo mais pleno e interessante”, o chamado “sonho acordado” em que se confundem sono e consciência.
Que jogada perfeita começou naquele toque de Cristiano. Di Maria chora, que momento emocionante! Que sonho perfeito!
“Melhor Jogador, Melhor Marcador e Campeão do Mundo”, diz a voz, sobre a silhueta de um GOAT, o maior de todos os tempos.
“Já não acontece desde Ronaldo em 2002”. No meu córtex excitado e resistente a entrar em vigília, agitam-se os neurónios com a aproximação veloz de um cometa com a forma e a imagem de Paolo Rossi.
Passou mais de uma hora, volto à grande tenda no deserto, a França só apresenta caretas e carantonhas, jogadores que saem chateados, jogadores que entram tensos, um treinador que não mostra nervos nem ansiedade.
A esvoaçar surge-me um falcão do deserto com o faccies de Piers Morgan, em versão amiga Olga da família Aveiro, a tuítar que “os franceses foram claramente envenenados”.
Mbappé a esconder-se como o “Fenómeno”, a cabeça debaixo da areia. Junta-se-me na amálgama subconsciente a imagem de brasileiros a chorar na final de 1998, pipetas, lâminas, seringas, micróbios em roda livre, uma corrida de camelos carregados de vírus.…
Viro-me de novo, luto contra o início de pesadelo. Onde estás, Cristiano? Onde estás, Cristiano, que já não te vejo aqui na tua final?
Começava a chegar ao apagão do sono em que nada se mexe, nem olhos, nem vísceras, nem membros, quando a voz dá um grito:
“Penálti!, Penálti!”
Vislumbro um antídoto na fogueira de um druida chamado Didix Deschampix, a poção mágica das substituições, a libertar Mbappé do feitiço do veneno e a relançar a França. O som sumido de “Allez les Bleus” começa a sobrepor-se, muito ao longe.
“Non, non, non!”, debato-me contra o terror de acordar do sonho.
“Se a Argentina deixar, a França pode crescer…”, diz a voz. “Rabiot, Mbappé, Thuram, Mbappé atira, goooolo! Mbappé, isto é histórico!”
Aparece-me um engravatado aos saltos, volto a 1982, vejo Sandro Pertini, o avô de todo o Mundo, a voz diz-me que se chama Macron, mas parece-me ouvi-lo dizer o mesmo que o velho italiano: “este é o meu dia mais feliz como presidente”.
Entrei outra vez em sobressalto, já não consigo distinguir quem bateu aquele remate mesmo no fim, o Lloris em voo, o jogo empatado. Eras tu, Cristiano? Pareces-me mais baixo…
Quero acordar, mas o sonho agarrou-me os sentidos. Prolonga-se.
“Siiiiiiii”.
Vejo-te regressar, Cristiano, afinal, para fazeres o 3-2 quando já ninguém esperava, és um gigante, ainda tens muito para dar: “Não chores por mim, Di Maria”.
O sonho entra num ritmo frenético, guarda-redes com asas, com quatro braços, pistões a bater na barriga das pernas dos avançados, anjos negros a esvoaçar sobre as grandes áreas, outro penálti de Mbappé, cheio de veneno, direito aos corações do valente Martinez e de todas as mamãs da Plaza de Mayo.
Um ‘hat trick’ numa final de Mundial, pela primeira vez desde 1966, está encontrado o teu sucessor como melhor jogador da Europa, quiçá do Mundo.
Que ninguém me acorde agora.
Penaltis! Como pode um Mundial ser decidido por penaltis? Anda bater, Cristiano, tu bates bem!
Como pode um jogo destes ser decidido por um tipo chamado Montiel? Só mesmo em sonhos…
São 18 horas, quando sou incomodado por um barulho contagiante de barras bravas a cantar "Muchachos, Esta Noche Me Emborracho”, ao ritmo de malacachetas como fundo de uma imagem fantasmagórica: um emir de turbante branco na cabeça a trocar sorrisos cúmplices com um capo de cabeça rapada e um baixinho tatuado vestido às riscas a ser levado em ombros com uma taça de ouro nas mãos.
Aquele som, aquela batida, cada vez mais perto, cada vez mais alto, cada vez mais nítido, a despertar-me os sentidos, ao fim de três horas de sonho…
"En Argentina nací
Tierra del Diego y Lionel...
Muchachos
Ahora nos volvimos a ilusionar
Quiero ganar la tercera
Quiero ser campeón mundial"
E acordei. Para a vida."
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