"Mais do que a desigualdade orquestrada pelos modos de organização das competições desportivas ou das que resultam da grande disparidade dos recursos financeiros, o recurso à dopagem coloca em evidência a questão da desigualdade física e psicológica entre os desportistas. Ela toca a essência da atividade, a igualdade corporal, que abrange principalmente a prática desportiva. Como define Jean-Marie Brohm (1976, p. 89), “o desporto é a instituição que a humanidade descobriu para registar a progressão física contínua”. E o corpo é concebido como uma “potência perfectível” (p. 89). Por consequência, atentar ao princípio da pureza do corpo, é colocar em causa o objetivo primeiro da prática desportiva. Como registar o progresso do corpo humano se ele apresenta modificações com o apoio de recursos externos? Mesmo se se crê “na possibilidade de majorar indefinidamente as possibilidades físicas, por uma exploração racional, sistemática, científica” (Baillette, 1992, p. 124), a legitimidade de uma tal situação coloca em causa o quadro ético e moral, no qual o desporto se inscreve. Com a alteração da noção de corporeidade, como dado puro e imutável, a dopagem leva a uma nova apreensão do corpo, concebido como suporte modificável, modulável e experimental.
Dantes, era o reconhecimento da excelência corporal, que tinha a ver com o reconhecimento do esforço consentido, quando da competição, depois do trabalho (treino) efetuado para tornar possível um determinado nível de performance. A performance desportiva tinha por objeto a validação dos méritos corporais individuais e/ou coletivos; ela atestava a superioridade de uns relativamente aos outros. Ela postulava a igualdade de oportunidades de cada um à partida: igualdade no respeito das regras da disciplina e a igualdade de componentes fisiológicas dos participantes. A desigualdade de resultados, neste quadro, não era contestável. O mérito do vencedor tinha a ver apenas com as capacidades físicas associadas a um trabalho de preparação de longa duração. No entanto, os factos que contradizem esta conceção abundam. As questões da dopagem saltam quase quotidianamente para as páginas dos jornais desportivos. Não faz sentido aqui relatá-los todos. Contentar-nos-emos apenas em salientar alguns exemplos para validar a ideia, segundo a qual o desporto se encontra confrontado a uma crise que conduz a interrogar sobre o sentido profundo desta atividade: a comparação das performances do corpo humano. O primeiro exemplo é o de Benjamin Sinclair Johnson, mais conhecido por Ben Johnson, nos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988. Vencedor da prova dos 100 metros, o sprinter canadiano é acusado de dopagem ao estanozolol, um esteróide anabolisante. O Comité Olímpico Internacional (CIO) restabelece a justiça desportiva, privando-o da medalha de ouro para a remeter a quem de direito: Carl Lewis, que tinha ficado em segundo lugar. Bem que tenha sido apanhado pelos “garantes da moral”, Johnson revelava ao mundo que a igualdade de oportunidades é um embuste e que só contam os resultados. Outro exemplo, é o caso da Volta à França de 1998. Pela primeira vez, a justiça civil é chamada a misturar-se com a justiça desportiva. Esta intrusão no espaço guardado do desporto testemunha a incapacidade da instituição desportiva em manter o ideal igualitário e a vontade política de preservar este espaço social, como espaço moral de referência (Attali, 2004). A ação policial conduziu à exclusão de um grande número de ciclistas da Volta por estarem na posse de substâncias ilícitas ou porque o enquadramento desportivo e médico era suspeito de tráfico de substâncias dopantes. Este evento, sem precedentes, colocou em evidência outro aspeto da dopagem. Se o caso de Johnson poderia parecer um caso isolado, como um atleta sem escrúpulos, a Volta à França, e as acusações contra a equipa Festina, colocava em evidência uma lógica de dopagem assente numa organização estruturada. Mas não são apenas estas duas práticas desportivas (atletismo e ciclismo) que são manchadas com os casos de dopagem. É todo o universo desportivo.
Numa perspetiva sociológica, a dopagem não é uma súbita maldição. Segundo o sociólogo Perrow (1984), a dopagem surge como um “acidente normal”, que se reproduz num determinado contexto social. Os sociólogos relativizam a ideia de autonomia individual para a descrição dos factos. Eles sublinham, sobretudo, a implicação dos indivíduos nos constrangimentos sociais e na crítica da modernidade. A prática universal da dopagem mostra que os atletas não agem de forma autodeterminada. Uma constelação de indivíduos são os verdadeiros atores da violação das normas no desporto profissional moderno (Bette, 2011). As dinâmicas próprias do desvio, e o reforço do mesmo, implicam cada vez mais atletas no problema da dopagem a nível nacional e internacional, e em quase todas as práticas desportivas. Com o abandono do espírito do “fair-play”, os desvios tornaram-se escolhas estratégicas, cálculos racionais feitos com “sangue-frio” pelos atores desportivos para se adaptarem às possibilidades e constrangimentos do seu meio desportivo de alto rendimento.
Existe uma correlatividade entre a tensão da incerteza e os resultados, vivida numa lógica de vitória/derrota. Os espetadores são fascinados por isso. Se o primeiro elemento é o desporto de alto rendimento, o segundo fator que engendra a dopagem é o público desportivo. Nas últimas décadas, o desporto de elite tem levado a uma melhoria das possibilidades técnicas, um elemento sólido e central dos lazeres modernos e de indústria dos lazeres. As competições desportivas são apaixonantes, até ao insuportável, formando uma ilha de diversão e de incerteza, que atrai e diverte. Enquanto observadores externos, os espetadores podem participar, sem que lhes seja exigida a produção de performances. As competições desportivas são interessantes para o público, dado que permitem experiências estéticas corporais e experiências coletivas, sem a necessidade de intimidade e proximidade. Também a procura de performances desportivas extraordinárias pelo público leva à atenção dos meios de comunicação social. As sociedades modernas levam a pensar o desporto como um “show desportivo”, para retomar a expressão de Georges Vigarello (2002), onde os atores desportivos se confrontam num “ringue” como os atores interpretam uma peça de teatro (Attali, 2004).
Com base nos relatórios produzidos pelo Conselho Nacional Antidopagem (CNAD) e pela Autoridade Antidopagem de Portugal (ADoP), de 2003 a 2018, é possível fazer-se o apuramento dos testes positivos de dopagem. Uma das conclusões que se pode retirar é que abrange quase todas as práticas desportivas. O futebol é a modalidade onde mais se verifica casos de dopagem (117 casos), seguindo do ciclismo (99 casos) e kickboxing e muaythai (56 casos) (cf. Figura 1).
Figura 1: Casos positivos de dopagem (2003 a 2018).
Fonte: CNAD e ADoP
Quando o princípio da equidade não é respeitado, seja pelo modo de organização das competições, seja pela modificação física e fisiológicas, ou ainda pela corrupção), o “desporto fica destabilizado”, levando a interrogar pelo seu futuro."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!