"Em Janeiro, Eusébio nasceu e morreu. Por isso, todos os anos, ele é a personagem que enche as minhas páginas com a mesma alegria vibrante com que o víamos jogar. Tenho memórias infinitas de Eusébio. As suas memórias nunca se apagarão.
Para mim, Janeiro é mês de Eusébio. Em Janeiro nasceu; em Janeiro morreu. Ou, melhor, não morreu; encantou-se, como dizia João Guimarães Rosa.
Guimarães Rosa também dizia: 'O mundo é mágico; as pessoas, não.' Aí, enganou-se. Enganou-se redondamente porque Eusébio era mágico. Tão mágico como o duende de Lorca cuja magia nos sobe dos pés até à cabeça e nos permite fazer coisas impossíveis.
Eusébio tinha duende. E, quando o duende tornava conta de Eusébio, ninguém conseguia pará-lo.
Há uma imagem de Eusébio que está tão profundamente arreigada na minha memória, que, de vez em quando, passa em frente dos meus olhos em forma de filme. Eusébio corre. Tem o poder de um super-homem. A sua passada é imparável. Depois levanta voo. Ergue-se ao ar como um anjo negro o desfere um soco de alegria que faz tremer o mundo. Foi no dia 19 de Julho de 1966.
Os brasileiros dizem que foi Pelé o inventor do soco no ar. Deixá-los. Para mim, o melhor soco no ar de Pelé foi Eusébio quem o deu. Vá: revejam o filme desse Portugal-Brasil de 1966. Vejam o filme, porque não é possível descrevê-lo. Nem imitá-lo.
Também não se consegue imitar Robert De Niro, no Taxi Driver, quando ele pergunta ao espelho:
- Are you talking to me?
E ainda bem.
Não era possível imitar Eusébio quando este levantava voo com os seus braços fortes que eram asas que um deus invejoso não quis acabar.
O voo...
1966. Ano de Eusébio. Os senhores da FIFA, com a sua insuportável cavalidade, taparam os olhos a tudo o que aconteceu nesse Campeonato do Mundo de Inglaterra. E escolheram para melhor jogador da competição o capitão dos ingleses, Bobby Moore. Como sempre, Eusébio não discutiu. Não precisava. Ele sabia que era melhor, incomparavelmente melhor do que Bobby Moore. Também sabia que era incomporavelmente melhor que Bobby Charlton, e Charlton foi o mais importante de todos os jogadores das camisolas dos três leões.
Eusébio sabia que era incomparavelmente melhor do que Florian Albert.
Eusébio sabia que era incomparavelmente melhor do que Hidegkuti.
Eusébio sabia que era incomparavelmente melhor do que Dennis Law.
E, no entanto, perdeu Bolas de Ouro para todos eles. Guardou a única que o deixaram ganhar com o carinho de ter sido o primeiro português a ganhá-la. Eu ia a casa dele a via-a, a Bola de Ouro. E as duas Botas de Ouro.
O ouro de Eusébio foi tão curto para o tamanho do seu futebol.
Volto a 1966.
Não era a primeira vez que Eusébio defrontava o Brasil. Entre 1962 e 1966, as duas selecções jogaram por seis vezes, e Eusébio esteve em cinco dessas partidas. Falhou a derrota de 4-1, no Rio de Janeiro, em Janeiro de 1964, por lesão, mas esteve no Morumbi (2-1) e no Maracanã (1-0), em Maio de 1962, nas Antas (0-0), em Junho de 1965, e sobretudo no dia em que Portugal atingiu a idade adulta: 21 de Abril de 1963. 'O mais espectacular resultado de sempre da selecção nacional', garantiram eufóricos os jornais portugueses de todos os quadrantes. E, no entanto, o resultado mais espectacular resumia-se a 1-0, golo de José Augusto.
Pois, sim, mas o Brasil é o Brasil, e todos sonham vencer o Brasil nem que seja por uma vez na vida, nem que seja por meio golo. O Brasil, bicampeão do mundo, em 1958 e 1962, caíra em Lisboa, no Estádio Nacional, e Eusébio estava lá. Como estavam Gilmar, Amarildo, Zagalo. E aquele linha avançada do Santos que soava como a letra de um samba: Dorval, Mangálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Não chegaram.
Costa Pereira e Vicente, Coluna e José Augusto, Yaúca, Hernâni e Eusébio foram melhores. E mais uma vez choviam as comparações entre Eusébio e Pelé, e Pelé e Eusébio, sempre multiplicadas, sempre inevitáveis. Ou não tivesse sido Pelé a primeira alcunha de Eusébio no futebol.
Em Liverpool, no dia 19 de Julho de 1966, Eusébio guardou para a segunda parte o seu golo mais brilhante. E quando subiu no ar para aquele soco indelével, vigoroso e vibrante, a sua sombra estendeu-se sobre Pelé como se escurecesse o Brasil inteiro.
O sol amarelo de Copacabana perdeu-se atrás de uma nuvem.
O diz-que-diz-que macio de Itapuã calou-se de repente.
O Redentor fez escorrer pela sua face impenetrável uma lágrima de betão.
E Eusébio voava sobre Liverpool, socando o ar, e tudo nele era luz e cor e uma vontade indómita de viver..."
Afonso de Melo, in O Benfica
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