"Este ano, a época de caça ao antijogo começou mais cedo. Costuma ser mais para o fim da temporada, quando os pontos ficam mais caros, o desespero toma conta das cabeças dos que lutam pelo título e os mais fracos esbracejam para ficarem acima da linha de água. O início de época atípico graças à Covid-19 e as dúvidas enervantes sobre a constituição dos plantéis – o mercado de transferências só fecha hoje e o Futebol Clube do Porto, por exemplo, arrisca-se a perder duas das suas maiores figuras – puseram o foco nesse produto típico do nosso futebol que é o antijogo.
É uma pena. Tal como o cante alentejano nasce da paisagem e das duras condições de vida dos trabalhadores, o antijogo, denominação de origem demarcada, peça em filigrana artesanal de engano e esperteza que usa os atrasos na reposição da bola e a simulação de lesões como matéria-prima, nasce dos estádios sem espetadores, da luta sem tréguas pela sobrevivência e dos salários em atraso. Ninguém vai para treinador com o sonho de fazer antijogo. O antijogo é resultado das condições árduas, de quem se vê obrigado a fazer omeletes com cascas de ovo e a lutar pelo pontinho nosso de cada semana. O antijogo é o bife dos pobres. Devia ser mais apreciado.
Conceitos como “teologia negativa” ou, noutro campo, “antimatéria”, têm o prestígio das coisas complexas. Já o antijogo não tem muitos defensores. O que para mim é motivo de espanto. Algumas expressões sobre um jogo de futebol – “matar o jogo”, “arrefecer o jogo”, “controlar o jogo”, “adormecer o jogo” – parecem saídas do léxico de um psicopata assassino em série. O que está em causa é o controlo. Às equipas mais fracas não convém um jogo demasiado vivo. Torna-se imperioso “quebrar o ritmo” do adversário porque quanto maior a velocidade do adversário, mais imprevisível e perigoso se torna. Não é de admirar que todos os treinadores de equipas pequenas quando jogam contra equipas mais poderosas se preocupem, em primeiro lugar, em anular o adversário. Não só porque defender é mais fácil mas porque é a estratégia mais sensata. Irritar o adversário, frustrá-lo, enervá-lo ao ponto de ele perder lucidez e concentrar-se mais na irritante estratégia do rival do que nos instrumentos de que dispõe para a contornar.
Na antevisão do jogo com o Marítimo, Sérgio Conceição ofereceu de mão beijada um trunfo ao adversário quando reconheceu que a habitual estratégia de Lito Vidigal o irritava. Ao reconhecê-lo, expôs-se. Acredito que tenha sido uma exposição calculada e com dois objetivos: primeiro, condicionar Lito Vidigal, fazendo-o envergonhar-se antecipadamente da sua estratégia, na esperança de que, de um dia para o outro, o treinador do Marítimo, para corrigir a imagem negativa, entrasse no Dragão cândido como um lírio a pedir para ser colhido; em segundo lugar, passar uma mensagem ao árbitro: se for preciso dar dez ou vinte minutos de compensação, então que se dê.
O segundo objetivo foi conseguido. Na segunda parte, o árbitro concedeu uns generosos dez minutos de compensação que, apesar disso, não alteraram a configuração do jogo. O Porto continuou a atacar atabalhoadamente, o Marítimo continuou a defender-se em bloco e a atacar de forma cirúrgica. Nos descontos os madeirenses marcaram um golo em contra-ataque, os portistas marcaram um golo com um remate desesperado de meia-distância que ainda desviou num defesa.
Já o primeiro objetivo não foi alcançado. O bom Vidigal não caiu na esparrela de Conceição. Mordeu o orgulho e manteve-se fiel aos seus princípios negativos. Apresentou-se no Dragão não como o treinador adversário desejaria, mas da maneira mais apropriada para lhe causar dano. Conceição não pode levar a mal que os adversários não colaborem com a sua ideia de jogo e que não entrem no Dragão com a disposição turística de oferecer um grande espetáculo e almoçar cinco ou seis batatas. E se o treinador teve a hombridade de assumir o falhanço das suas escolhas, também deveria assumir que os “mind games” (os “jogos da mente”, como diria o saudoso Rui Vitória) lhe correram mal. Aquele ataque preventivo teve o condão de acicatar Lito Vidigal e de tornar mais fácil a tarefa de motivação dos seus jogadores.
É curioso que, no final do jogo, Conceição tenha recorrido à analogia da dança, dizendo que são precisos dois para se dançar o tango. A sabedoria popular diz que uma equipa joga o que a outra a deixa jogar, mas Conceição preferiu uma metáfora cooperativa. Porém, o futebol, como bem sabe o combativo treinador do Porto, não é dança. Na dança os parceiros colaboram, procuram o mesmo objetivo. O sucesso de um é o sucesso de outro, a nota artística de um é a nota artística do outro. Num combate – e o futebol é um combate – o objetivo é anular o adversário, a não ser que admitamos um jogo de futebol em que um dos contendores quer que o outro brilhe. Isso sim seria o verdadeiro antijogo e uma falta de respeito pelos espetadores.
Dito isto, fiquei triste com o ataque ao antijogo, um dos baluartes do nosso futebol e do nosso desequilibrado campeonato. O antijogo não é a causa dos desequilíbrios estruturais, é a sua consequência. É o fruto de uma árvore doente, mas que é a nossa árvore doente. Se não gostamos dos frutos e da compota amarga que eles dão, devíamos cuidar da árvore. Até que esse dia chegue, sejamos capazes de acarinhar o antijogo. Vamos importando expressões estrangeiras – catenaccio, tiki-taka, gegenpress – que fazem do futebol uma amálgama transnacional quando devíamos olhar para o nosso reduto e comemorar a magia provinciana do tradicional antijogo e do futebol para o pontinho que tem o sabor inconfundível a comida caseira mesmo que faça mal ao colesterol e dê cabo da tensão arterial. Nada que não se resolva com sais de fruto e um pezinho de dança com um parceiro de boa vontade."
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