"A 18 de abril de 2010, na época em que Mourinho ganharia tudo com o Inter, houve um dérbi de Roma em que Totti foi substituído ao intervalo, só porque sim, e a glória para o lado grená da cidade foi resgatada por um montenegrino que marcou dois golos e pôs a Curva Sud a fervilhar.
O Guglielmo abre o armário e há uma gaveta, até acho que eram duas, cheias só de coisas grenás. Está na hora de nos mascararmos, ele tira uma camisola e esmiúça-lhe a história, chega a mão a outra e detalha quem jogava, treinava e o que fez chorar nessa época. Não é que haja urgência, é de manhã, sobra tempo, mas ele lembra-se da hora, das 17h30, e interrompe o inventário mental.
Acelera-se e apressa-nos, escolhe camisola e cachecol para cada um e tragam um casaco, diz. Mas o céu está azul e o sol radia, é Abril, está calor, a lógica encurta as mangas, mas ele insiste, tragam casaco.
Não se explica, a pressa murcha-lhe a paciência, que apenas lhe alimenta a insistência. Eu e o Jordi, catalão ferrenho do Barça, nascido no dia e no ano do Messi, obedecemos. Seguimo-lo no ritmo e no ciao repentino que deixamos na sala de casa, a roçar o desrespeito pelos pais dele. Está um amigo do Guglielmo já lá em baixo, espera-nos na rua com a mota e o capacete que faltam nas contas.
Mais uma vez, ele insiste, temos de ir de casaco vestido e não é com certeza a bem dos resfriados, porque o dia está acalorado, nem pela segurança, pois se nos instruí a cobrir o corpo com uma mão, usa a outra para nos dar o que nem Belzebu nos daria para protecção e seria eufemismo chamar de capacete. Mas continua a não se explicar.
Calhou-me ser o pendura na moto do Guglielmo. Tapa-te, esconde o cachecol, diz a cada oportunidade, repetindo o aviso, pelo menos, a cada fôlego que dou e laivos de atenção que consigo dedicar ao que fala, e não ao que conduz, serpenteando entre carros, pessoas e outras motos, que são mais do que as mães e a especialmente do que a minha, que nem mãos teria para agarrar no coração se visse o circo caótico onde parece haver um concurso para ver quem se esquiva mais tarde do azar.
Estamos a ir para uma zona de Roma, perto do Estádio Olímpico, onde é típico os adeptos da Roma se juntarem, brindarem à fortuna e empanturrarem a alma, onde a fronteira está definida e gente da Lazio não se avista. Onde estamos quase a chegar e, pouco antes de um semáforo que nos pára num sítio com mais árvores e arbustos, o Guglielmo volta a insistir no fecho do casaco.
Parados no vermelho, explica a guerrilha cromática do lugar: ali é território azul celeste, onde já aconteceram espancamentos de adeptos grenás por pessoas da Lazio, que escondem soqueiras e tacos de beisebol onde há folhas verdes, aguardam pela contribuição do semáforo e espancam quem mostre ornamentos rivais e esteja sobre duas rodas.
Bendito casaco e abençoada condução desmiolada para serpentearmos dali para fora, rápido, para chegarmos ao sítio do beberete, conversarmos com amigos romanistas do meu amigo e caminharmos até ao Olímpico, com os casacos à cintura. Mesmo à porta, o Guglielmo insiste que bebamos um caffè borghetti, de um gole só. Obedecemos de bom grado, com as resistências em baixo pelo que bebericámos antes e que ele queria aniquilar pelo que nos conta à entrada do estádio.
Os nossos dois bilhetes não eram para a Curva Sud, a bancada de peregrinação dos adeptos da Roma, atrás de uma das balizas, mas para um sector ao lado, que nos punha uma grade amarela no meio da romaria, com uns três metros de altura, salvo seja a memória atordoada. Teríamos que a trepar, como tanta gente o faz, sem arrelias com a autoridade, dizia ele.
Confiámos, que remédio, trepámos e recordo-me de que só lá no alto acreditei no que o nosso amigo garantira, porque, realmente, ninguém à volta parecia importar-se, ou sequer reparar na escalada. Já no meio de uns bons milhares, com bandeiras mil, cachecóis sempre no ar e cânticos que o Guglielmo afincadamente tentava ensinar, começou o jogo sem um hino dos mais bonitos cantado antes, porque nesse dérbi a casa era da Lazio, mas o dérbi acabaria por ser da Roma.
No campo lá ao longe, à distância da gordura da pista de atletismo, a partida era aborrecida. Muita parra de faltas, pancadas, paragens e pouca uva de futebol atraente e gostoso, se esse fosse o único atrativo para ir a Roma ver um encontro entre os rivais da cidade.
Não, era o fascínio acumulado de anos a ler e a saber do Totti, ídolo de uma causa só, que me conquistou por completo fazia 10 anos, no Europeu, com a Itália e no chapéu que pôs à Holanda, nos penáltis, mas que foi substituído ao intervalo, estou ainda hoje para saber porquê.
Eram os cânticos, as bandeiras, o hino, o tal dérbi daquele golo, aquele dérbi do tal festejo, invariavelmente o Totti a esmerar-se, mais os Contis, os Gianninis, os Delvecchios e os Batistutas.
Eram recontados pelo Guglielmo que nos contou quem era Carlo Zampa, o narrador de jogos que, no fundo, era como ele, cheio da mesma alma na boca, da mesma emoção a que nos rendíamos, pudera, durante um semestre do ano anterior, no quarto do dormitório que ficava a dois metros do campo de futebol da Universidade de Utrecht, onde a malta de vários mundos se reagrupava, no final de cada jogo, para bater bolas de conversa sem tirar as botas dos pés.
Não me recordo de um montenegrino itinerante, feitio difícil, alguma vez ser narrado, sê-lo-ia dificilmente, porque, como tantos jogos antes deste, o penáti e a recarga ao livre que acertou na barreira de homens, após a Lazio marcar primeiro, nunca seriam dele se o simpático Ranieri não tivesse substituído o homem sobre quem todas fábulas narravam, a quem cada bola pertencia caso uma falta a parasse para ser batida.
Improvável e sem capa surgiu Mirko Vucinic, o herói do dérbi a que não voltei a ir, sei lá se voltarei e que demorei demasiado a experimentar, graças a sabe-se lá o quê, mas grato estou, porque sem um amigo romano com quem, desgraçadamente, não falo há muito, nunca teria vivido o quão louca é a vida e são aqueles que vivem à volta de um jogo."
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