"O dinheiro está a dar cabo do futebol, não é? As somas obscenas pagas aos jogadores, as contratações milionárias, o enriquecimento de figuras secundárias, tudo isto está a matar o desporto-rei, a afastar os adeptos que desconfiam da verdade das competições e, em consequência, se viram para os campeonatos distritais à procura da pureza perdida, da mística e do amor à camisola. Não é assim? Parece que não. Em 2019, a Liga dos Campeões, a maior competição de clubes do mundo, o símbolo do futebol moderno, atingiu um pináculo de qualidade dificilmente superável, ofereceu-nos jogos que ficarão para a história, reviravoltas inacreditáveis e ideias de jogo triunfantes cujo sucesso passa pelo dinheiro, mas não se reduz ao vil metal.
E que dizer da Premier League? É curioso que o campeonato mais rico do mundo, aquele que gera mais receitas e distribui os lucros de forma mais equitativa, em que algumas das equipas estão nas mãos de oligarcas russos, grupos asiáticos e xeques de fundos ilimitados, seja também o campeonato mais entusiasmante, mais competitivo, mais limpo, mais saudável. Nos anos 90, no mundo pré-Bosman, o futebol italiano, sustentado na mestria táctica dos seus treinadores, atraía os melhores jogadores e dominava a Europa. Com a Lei Bosman e sucessivos escândalos de corrupção e suspeitas de doping, o Calcio caiu num buraco de onde tarda em sair, sendo o destino do AC Milan o mais ilustrativo da sua contínua degenerescência, de que o domínio arrasador da Juventus nos últimos anos é outro sintoma.
Os adeptos podem não se cansar de vitórias, mas ganhar campeonatos como quem os compra num supermercado – para usar uma imagem de Sir Alex Ferguson – é mortal para uma competição e, verdade seja dita, faz com que os tiffosi vejam na conquista do campeonato mais uma obrigação do que uma proeza. Também a Bundesliga sofre com a macrocefalia representada pelo domínio insaciável do Bayern de Munique, que se comporta como um gigante canibal, devorando tudo e todos para manter o trono. Não é fácil perceber, a não ser por razões históricas e de força do próprio clube, como é que num campeonato teoricamente tão equilibrado o Bayern foi cavando um fosso gigantesco para os seus adversários, a ponto de a grande dúvida no início de cada época ser a data em que os bávaros hão de conquistar o título. Além disso, a Bundesliga também nunca conseguiu fabricar uma aura que ultrapassasse o regional, o que se vê perfeitamente nos jogadores que consegue captar, muitos deles oriundos de países vizinhos.
Quanto ao campeonato espanhol, o seu interesse reduz-se à disputa Real Madrid-Barcelona, com as ocasionais intromissões do Atlético a temperarem o prato. O resto, apesar do bom comportamento europeu e da competitividade dos clubes de segunda linha, pouco interessa. Com a partida de Cristiano Ronaldo para Itália, a narrativa do grande combate perdeu um dos seus eixos fundamentais. Sem o seu arquirrival, Messi ficou numa espécie de contrarrelógio. As suas qualidades estão lá, mas o povo gosta mesmo é dos confrontos directos em alta montanha. Os combates de boxe que entraram para a história não foram os combates entre as lendas e adversários de quinta categoria, mas aqueles em que as lendas enfrentaram outras lendas.
O que a Premier League tem sabido fazer é construir a sua própria lenda, com a consciência de que isso só é possível quando todos os competidores partilham uma mesma cultura desportiva. Essa cultura que permeia o jogo em Inglaterra tem atenuado os possíveis efeitos do doping financeiro de que beneficiam certos clubes (Chelsea e Manchester City, sobretudo) e obriga os investidores a respeitar essa cultura não só por razões líricas, mas também por razões pragmáticas de retorno financeiro.
É normal que os adeptos dos clubes rivais se queixem das injeções de petrodólares no City, como também se queixaram da liberalidade infinita de Abramovich no Chelsea, mas poucos serão incapazes de reconhecer mérito a uma equipa que reúne talentos viçosos como Bernardo Silva, Ederson, Kevin de Bruyne, Sané ou Sterling e os mistura com a experiência de Kompany, Fernandinho e Aguero. Construir uma equipa destas não sai barato, mas trata-se de um processo muito diferente da política galáctica de Florentino Pérez. Ali ninguém compra jogadores para vender camisolas, mas, lá está, para construir equipas. O muito dinheiro a circular é posto à disposição de ideias desportivas bem definidas e que, regra geral, são personificadas nos treinadores.
O problema do Manchester United, e que explica a relação difícil dos adeptos com os proprietários do clube, os norte-americanos Glazer, não é a falta de dinheiro, mas a falta de uma estratégia, de uma ideia, que a reforma de Sir Alex Ferguson veio pôr a nu. Os investidores do City, apesar de ganharem títulos com Mancini e Pellegrini, perceberam que era preciso uma nova estratégia, mais duradoura, e uma nova filosofia. Foi essa a razão, e não a obrigação de conquistar a Champions, para terem contratado Guardiola.
Depois de uma experiência fracassada com Brendan Rodgers, que, ainda assim, esteve perto de conquistar um título que foge há quase três décadas, os donos do Liverpool, a norte-americana Fenway Sports Group, apostaram num treinador para um projecto a longo prazo. Jürgen Klopp demorou quatro anos a conquistar o primeiro troféu no Liverpool, mas nesses quatro anos de seca a equipa melhorou sempre e os adeptos perceberam que havia ali qualquer coisa a ganhar força de uma forma sustentada. Foi o carisma do treinador alemão aliado às suas ideias, ao crescimento da equipa e à compreensão do espírito do clube que lhe concedeu o tempo necessário para chegar ao troféu que só não é o mais desejado porque há aquele pequeno problema de três décadas a ver navios.
Para não matarem a galinha dos ovos de ouro, as organizações devem esforçar-se para que os clubes compitam em igualdade de circunstâncias e com transparência. Isto não significa que os adeptos alguma vez darão mais importância a presidentes e investidores do que aos representantes da paixão que os move: os jogadores e os treinadores. O culto caudilhista dos presidentes providenciais funciona bem noutras paragens, mas a vantagem de o dinheiro não ter rosto é que a cara do futebol passa a ser a de treinadores e jogadores. É provável que certos investidores invistam no futebol por razões de vaidade, prestígio pessoal ou branqueamento político, mas aqueles que investem para ter retorno sabem que não podem hostilizar uma cultura que é precisamente a base do sucesso de um negócio como a Premier League, um negócio peculiar, como é o do futebol, em que o dinheiro conta, como em qualquer outro negócio, mas em que a paixão dos adeptos é o verdadeiro motor.
A aposta da FSG em Jürgen Klopp resultou não só pela sua “extraordinária liderança” no balneário, como referiu o presidente Tom Werner, mas pela sua relação com o espírito de Anfield e com o espírito do futebol inglês. E isso vê-se na forma como Klopp reage aos triunfos e às derrotas: com euforia no momento das vitórias e elevação na hora das derrotas, frustrado por não ter vencido o campeonato, mas satisfeito por ter feito tudo para o vencer. A reacção de Werner também se enquadra neste espírito de respeito pela competição e pelos adversários. Apesar das investigações ao Manchester City por uma eventual quebra das regras do fair-play financeiro, o presidente da FSG deu os parabéns ao adversário e separou os dois assuntos. Se há clubes que não cumprem as regras, devem ser punidos, mas isso não implica retirar o mérito a quem conquistou o título em campo.
O dinheiro é importante, sim, mas não é tudo. Ao ver os festejos eufóricos dos jogadores do Liverpool, numa alegria infantil, pensei: quantos jogadores não abdicariam de uma parte dos seus rendimentos para viver um momento assim? Algum dos adeptos do Liverpool que choravam e cantavam nas bancadas estava a pensar na FSG? Algum deles lamentou as fortunas investidas na contratação de Virgil Van Dijk e Alisson? Algum deles pensou que o melhor seria terem-se livrado de Klopp nos anos em que falhou a conquista de troféus?
O sucesso da Premier League, bem como o sucesso do Liverpool, é esta capacidade de dar um rosto humano a um desporto que movimenta milhões (de pessoas e de euros). Os adeptos não se importam de pagar por isso porque estão a seguir a sua paixão e, quando olham para o relvado, veem homens, profissionais, imbuídos do mesmo espírito, guiados pela mesma paixão. E, bem vistas as coisas, haverá dinheiro que pague a sensação de assistir ao momento em que o capitão Henderson levantou a “orelhuda”?"
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