""[prefiro o homem] Que entende o triunfo da poesia sobre o futebol, mas que joga sua pelada todo domingo debaixo do sol" (Rodrigo Bittencourt, na voz de Thais Gulin)
Estamos em tempo de balanços: as épocas acabam, olha-se para trás, menciona-se os melhores e os piores protagonistas da temporada e depois vamos todos a banhos, entretidos com as movimentações de mercado, boatos, rumores, barulho, demasiado ruído. O que sobrou de uma época futebolística? Do que nos lembraremos daqui a vinte anos de 2018/2019? Conseguiremos daqui a umas décadas fazer retrospectivas e dizer o nome das linhas ofensivas dos vários clubes da Primeira Liga e também de equipas europeias que maravilharam ao longo da temporada? Ou estamos demasiado preocupados com polémicas e actores menores que se tornarão mais facilmente recordados no futuro, quando a demência nos atacar o cérebro?
Costuma dizer-se que está tudo na literatura. Recorro ao livro que está, por estes dias, na minha mesa de cabeceira, "Léxico Familiar" de Natalia Ginzburg, edição da Relógio D'Água, tradução de Miguel Serras Pereira. O livro narra a vida da família Levi e é uma das filhas, Natalia, que nos vai contando as peripécias familiares nas décadas de 30 a 50 do século XX, em Turim, num dos períodos mais conturbados da história recente de Itália. Natalia é, por isso, "testemunha dos momentos íntimos da família". Reparem neste excerto, pp.25-26:
"Somos cinco irmãos. Vivemos em cidades diferentes, alguns de nós no estrangeiro, e não nos escrevemos muitas vezes. Quando nos encontramos, podemos ser, uns para os outros, indiferentes ou distraídos. Mas basta, entre nós, uma palavra. Basta uma palavra, uma frase: uma dessas frases antigas, ouvidas e repetidas infinitas vezes, no tempo da nossa infância. (…) Uma dessas frases ou palavras faria com que nos reconhecêssemos mutuamente, como os irmãos que somos, na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas. Essas frases são o nosso latim, os vocabulários dos nossos dias idos, são, como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilónios, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive nos seus textos, salvos da fúria das águas, da corrosão do tempo."
Imaginem o vosso grupo de amigos ou familiares com quem costumam ver e discutir futebol. Adicionem, na medida do possível, vinte ou trinta anos em cima de cada uma dessas pessoas e imaginem-se no futuro: se alguém soltar os nomes Bruno Fernandes, Rafa, Marega, Chiquinho, José Mota ou Vítor Oliveira, que enredo virá a seguir, que fio se soltará da meada mental nesse grupo de discussão?
Lembrei-me disto porque, após a atribuição do Prémio Camões a Chico Buarque fui rever pela enésima vez o documentário "Futebol", inserido na colecção de 12 DVDs lançados há mais de uma década sobre a vida do Chico. Desde já é preciso destacar o facto de um dos capítulos da vida deste artista ser dedicado em exclusivo ao futebol - a paixão do compositor brasileiro pelo jogo é imensa, basta dizer que é neste documentário que ele fala de forma mais descontraída, revelando uma quase infantilidade, seja quando recorda em pleno Maracanã os golos do Maracanazo de 1950 sofridos pelo goleiro Barbosa, seja quando está na mesma mesa de Ronaldinho Gaúcho e fica de olhos brilhantes perante o craque dos relvados, como se fosse uma criança a mirar o seu ídolo, ou ainda quando recorda de memória as equipas do São Paulo ou do Santos das décadas de 50 e 60.
Não é normal termos alguém a ganhar prémios literários ou artísticos com tanta importância como o prémio Camões que ao mesmo tempo tenha uma paixão enorme pelo futebol, algo muitas vezes renegado pelas elites culturais de vários países. O Chico tem inclusivamente um clube dele, o Politheama, e quando em digressão continua a não prescindir das suas peladas, seja em Paris, Belo Horizonte ou Lisboa. Para além disso, na música dele o futebol não é apenas algo que aparece de passagem. Tem um samba chamado "O futebol", ode ao desporto que nos faz vibrar como pouco coisa na vida, e são inúmeras as referências que Chico vai fazendo nas suas letras, seja em músicas de desgostos amorosos ("Com açúcar, com afecto"), ou mesmo em músicas políticas, como "Pelas tabelas" ou "Meu caro amigo". Mas gostaria de destacar outras três canções onde o futebol aparece para dar brilho à narrativa.
Em "Biscate", numa discussão entre um casal desavindo o Chico consegue meter futebol ao barulho da seguinte forma:
Vives na gandaia e esperas que eu te respeite
Quem que te mandou tomar conhaque
Com o tíquete que te dei pro leite
Quieta que eu quero ouvir Flamengo e River Plate
A segunda, "Ilmo. Sr. Ciro Monteiro ou receita para virar casaca de neném" é uma deliciosa música sobre a rivalidade Fla/Flu. A última chama-se "Jogo de bola", do álbum mais recente "Caravanas" (2017), prova de que até com 75 anos o Chico não desistiu do futebol e está inclusivamente por dentro dos debates filosóficos dos nossos dias no que concerne ao mundo da bola. Isto tudo sem deixar de nos brindar com as suas famosas aliterações, nunca perdendo a noção que a poesia triunfará sempre sobre o futebol:
Salve o futebol, salve a filosofia
De botequim, salve o jogar bonito
O não ganhar no grito a simpatia
Quase amor
Da guria que antes do apito final
Vai sem aviso embora
Vivas a galera, vivas às marias-chuteira
Cujos corações incandescias
Outrora, quando em priscas eras
Um Puskás eras
A fera das feras da esfera, mas agora
Há que aplaudir o toque
O tique-taque, o pique, o breque, o lance
De craque do centroavante
E ver rolar a pelota nos pés de um moleque
É ver o próprio tempo num relance
E sorrir por dentro
Bem sei que a meio do tal documentário já referido o Chico diz algo bastante polémico: "gosto mais de futebol do que do Fluminense [clube por quem Chico torce]". A dicotomia pureza/clubite daria um outro longo texto, mas como já vos aborreci bastante celebremos alguém que consegue falar de futebol ao mesmo tempo que canta e escreve sobre a nossa vida. Eu tenho uma música do Chico para quase todas as situações da minha vida, sejam amorosas, políticas, sociais ou mesmo, lá está, situações do quotidiano como o futebol. É por isso que estranhei a total ausência de referências a esta faceta futebolística do Chico após a atribuição do prémio Camões na imprensa desportiva - peço desde já desculpa se algo muito evidente me escapou. Tínhamos aqui uma oportunidade para, neste final de época, nos esquecermos da espuma dos dias de mercado e celebrar alguém que consegue cantar sobre o Flamengo a propósito de uma discussão amorosa.
Bom Verão para todos porque "aqui na terra estão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock and roll. Uns dias chove, noutros dias bate o sol. Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui está preta""
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