"Que pena tenho eu de não ser um escritor de fino recorte literário, para poder relatar e arquivar o que vivi, no Arsenal do Alfeite, ou seja, no meio operário, na Direção-Geral dos Desportos, na universidade, no Brasil e noutros lados por onde adiantei o pé. Também me enfronhei em becos e tabernas, onde aprendi uma saborosa linguagem popular, enjeitada por certo pelos filólogos, mas que eu conservo, na forma de saborosas anedotas de má figura. Ainda não conhecia os manes Vieira, Camões, Castilho, Camilo, Quental, Pessoa, que me ensinaram a calcetar o discurso com palavras menos vulgares e que, para entendê-las, precisei do socorro do dicionário. Alturas houve em que descambei mesmo em aventurosas jornadas de que hoje não me arrependo mais porque nunca deixou de rodear-me uma rede inconsútil de ternura e de carinho dos meus saudosos pais e da minha querida mulher. Quando perguntaram a Sir John C. Eccles, um dos mais renomados neurologistas da história da medicina, como definia ele a “pessoa”, o médico recorreu à formulação kantiana: “uma pessoa é um sujeito responsável pelos seus atos”. Ora, porque me sinto um sujeito responsável pelos meus atos, lastimo os meus defeitos, as minhas imperfeições e deles francamente me arrependo. No entanto, ao longo da minha história, sempre dei provas, a quem me conhece, de insubmissão e de inquietude. Nunca deixei de varrer do meu espírito os miasmas de algumas ideias que me eram apresentadas quase como dogmas. No ensino, nunca aceitei, por isso, a autoridade como argumento. Sempre dei lugar primeiro ao questionamento crítico e criativo, um questionamento que procurasse traduzir-se em prática, em emancipação, em inovação histórica e política. Superar as velhas posturas passivas de ensino e de aprendizagem foi trabalho difícil, gerador de incompreensões, de inimizades e de invejas, mas não há outro caminho, em prol da formação de um sujeito histórico, capaz de construir e reconstruir conhecimento e capaz de transformá-lo em política. A vida assim mo ensinou.
Cultivar a inquietação parece atitude imprópria de um velho, como eu, a resvalar para jarrão. Mas, nos meus estudos (que diariamente frequento) nada faço à revelia de um irrestrito questionamento (e autoquestionamento), direi mesmo: de uma constante interdisciplinaridade. Mais de 40 anos andados nesta lida, e posso dizer, sem mentir, que fiz interdisciplinaridade com alguns dos melhores treinadores do futebol português e mesmo com o Mário Moniz Pereira, reconhecido, no seu tempo, como um dos melhores treinadores mundiais de atletismo. Também não escondo a minha simpatia pelo râguebi. Se bem penso, deveria ser modalidade obrigatória em ambiente escolar. Nunca esquecerei os treinos de iniciação ao râguebi do engenheiro Vasco Pinto de Magalhães, no Estádio Universitário. Extasiavam-me aquela galhardia, aquele amor ao desporto de quem sabia pôr a fraternidade humana acima das contingências da competição desportiva. Mas passo a palavra a Hilton Japiassu, no seu livro Interdisciplinaridade e patologia do saber (Imago Editora Ltda, Rio de Janeiro): “De modo mais preciso, podemos dizer que a interdisciplinaridade se nos apresenta, hoje, sob a forma de um tríplice protesto: contra um saber fragmentado, em migalhas, pulverizado numa multiplicidade crescente de especialidades, em que cada uma se fecha como que para fugir ao verdadeiro conhecimento; contra o divórcio crescente, ou esquizofrenia intelectual, entre uma universidade cada vez mais compartimentada, dividida, subdividida, setorizada e subsetorizada, e a sociedade em sua realidade dinâmica e concreta, onde a verdadeira vida sempre é percebida como um todo complexo e indissociável (…); contra o conformismo das situações adquiridas e das ideias recebidas ou impostas” (p. 43). Chegou o momento, diz o mesmo autor, de a ciência em geral procurar em comum as significações humanas, o sentido último do conhecimento. O sentido último do conhecimento é o desenvolvimento humano. Como afinal o sentido último do desporto, como área do conhecimento que é.
O humanismo laico proclamou uma moral autónoma, fundada na liberdade e na responsabilidade. A moral tornou-se então uma disciplina independente da filosofia ou da teologia. Para o “divino” Platão, a verdade e o bem confundiam-se. Quem conhecesse o verdadeiro faria inevitavelmente o bem. A moral jazia submetida ao conhecimento. Numa encruzilhada de inclinações, diante de um feixe de saberes, já que cada um dos filósofos tinha os seus conceitos e primava pela diacronia das fontes, só a revelação divina nos transmitia alguma segurança. Dostoievski viu bem o problema: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. No entanto, não há que negá-lo, a moral de Kant permitiu à humanidade dois séculos de moral laica. Em Kant, o imperativo categórico fundamental determina agir de tal forma que a máxima da nossa ação possa apresentar-se como regra universal. E, na investigação científica, não há progresso, sem interdisciplinaridade. Demais, nas ciências hermenêutico-humanas, hoje, sem conhecimento integrado do humano, não há desenvolvimento possível. Que o mesmo é dizer: sem interdisciplinaridade, não há desenvolvimento possível. Depor objetivamente sobre um tema qualquer da vasta problemática desportiva exige uma conceção de ser humano. Comecemos pela conceção clássica de homem, greco-latina portanto. Nesta, a essência do homem é antropológica. O pensamento medieval foi, acima do mais, teocêntrico. O pensamento moderno não nos deixa indemnes aos postulados antropológicos mas é principalmente, na sua embrenhada polimatia, antropocêntrico. O pensamento hodierno é sistémico e complexo. Por isso, em Martin Buber, o “eu”, mais do que uma substância, é uma relação. E uma relação que se converte em encontro dialógico que envolve a matéria, a vida e o espírito, presentes no ser humano e em toda a natureza. A motricidade humana tem assim (não o digo “ex cathedra”) de fazer interdisciplinaridade no Eu-Tu e no Eu-Isso, quero eu dizer: Eu-Tu, no diálogo entre pessoas; Eu-Isso, no encontro com a natureza, pois que o ser humano é um ser-no-mundo.
Volto a Hilton Japiassu: “os verdadeiros cientistas não se instalam mais em suas especialidades, mas ensinam que o progresso das ciências abre-se cada vez mais a exigências sempre novas (…). Dando um passo à frente, talvez não fosse por demais ousado pretender que a orientação das ciências humanas, no sentido das convergências interdisciplinares, se apresente como um dos únicos caminhos, permitindo-lhes que se tornem verdadeiramente ciências humansas. Porque, para além da fragmentação necessária em que se constituíram as diferentes especialidades, e através das aproximações e das convergências, não devemos renunciar ao esforço de reencontrar a unidade do domínio humano” (op.cit., p. 66). Toda a visão monodisciplinar, sendo embora necessária, é incompleta. E, nas ciências hermenêutico-humanas, ou sociais e humanas, sem o conhecimento do ”homem integral” que faz desporto, o treino é declaradamente errado, pese embora o repúdio das minhas ideias de meia-dúzia de auto-suficientes presunçosos. O que falta a muitos treinadores, seja qual for a modalidade em que trabalham, não é o conhecimento da técnica e da tática da sua especialidade, mas o conhecimento dos seus jogadores, como “ser, consciência e valor”. O atleta de alta competição surge, muitas vezes, como o resultado da falta de sincronia entre a velocidade de mudança, no âmbito da tecnociência, e o desconhecimento de uma noção de pessoa que represente a passagem do monocultural para o multi e o intercultural. O desporto tem que ser lido e vivido como desporto, mas em cuja leitura e vivência não pode prescindir-se da raiz primordial: a pessoa humana, no movimento intencional e solidário da transcendência. E portanto, como sujeito e como praxis e como liberdade. Enfim, cultivemos a inquietação; no desporto, há mais do que desporto – tudo isto, para entendermos o desporto!"
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