"Foi recentemente noticiado (04.07.2020) em «A Bola», que irá ser criado através do presidente da Federação Portuguesa de Futebol o programa “FPF na Escola” para promover o futebol entre as crianças dos 6 aos 10 anos, desenvolvendo um dia aberto em cada escola básica do 1º ciclo, em parceria com clubes locais e com a colaboração de ex-internacionais portugueses. Ficou só por explicar se este dia aberto será por ano lectivo, por período ou por semana. Neste último caso não nos parece – mas também será só isso – que haja tantos ex-internacionais que possam apadrinhar este programa… ou que os que a ele aderirem possuam competências pedagógicas para tal…
A Escola sempre foi uma fonte de receita fácil dada a existência de um público numeroso e localizado: eram os espectáculos de teatro, eram as apresentações de cúpulas celestiais dentro de um insuflável, era a apresentação de robôs ou de dinossauros telecomandados, era a apresentação de livros, era a fotografia dos alunos, eram as exposições disto e daquilo… Agora parece que as escolas se transformaram – ou virão a transformar – em locais onde “olheiros” poderão recrutar mão de obra fácil para o futuro ou onde uma organização poderá aumentar, quase que ficticiamente, o seu número de elementos integrantes (chamemos- lhes assim!)… Esta é uma primeira questão e prende-se com o uso (ou o abuso!) da escola.
Uma segunda questão leva-nos a dois conceitos que circulam por aí: a “detecção de talentos” e o “treino intensivo precoce”. O desenvolvimento motor da criança integra vários domínios: o afectivo, o social, o cognitivo e, claro está, o motor – aquele “motor” que é visível dado que os anteriores domínios o não são. Detectar talentos em tenras idades e treiná-los para quê? A resposta só poderá ser uma: para futuramente alimentarem o espectáculo e promoverem a venda de produtos – encontramos clubes, estádios e desportistas sempre ligados a marcas ou a logos – a um público consumista.
Os programas desportivos na Escola (e recordamo-nos de dois recentes, um ligado a patins, outro a bicicletas), deveriam estar mais preocupados (assim como as entidades que os gerem) com a riqueza das actividades motoras que permitem à criança desenvolver a cooperação, manifestar sentimentos, enriquecer a sua compreensão do relacionamento eu/outro, a sua integração no grupo e polir o seu comportamento. E perguntarão agora: então e os períodos sensíveis para a evolução das capacidades motoras (recordamo-nos de Grosser, assim como de Martin, no início dos anos 80 do século passado)? Responderemos com duas perguntas: por que motivo tanta preocupação com as capacidades condicionais e tão pouca com as coordenativas? Ou com as psico-cognitivas dinâmicas?
Professores, treinadores e pais esquecem-se ou desconhecem (ou fazem por desconhecer) que o desporto actual necessita instrumentalizar as crianças desde cedo. Numa primeira etapa com campanhas de sensibilização, com captação de jogadores, com capacidade de motivação e com oferta de recompensas. Numa segunda etapa torna-se necessário manobrar para que elas interiorizem desde cedo o sacrifício pelo jogo, que se habituem ao “no pain no gain”, que se esforcem para atingir resultados nem que seja a qualquer preço (sim, incluindo a fraude, o doping e a corrupção), que aceitem correr riscos e que sejam adeptas da inexistência de limites. Por último, são aliciadas com transferências para clubes de topo, com altos ordenados, com patrocínios fantásticos, com a publicidade e com a venda de direitos de imagem. O problema não reside nos que se esquecem ou desconhecem, o problema reside nos que sabem disso e isso praticam – dos que se servem do desporto! É assim que se constrói a carne para canhão que depois entrará numa enorme máquina ao serviço do capital para após o final de carreira muitos intervenientes ingressarem na mendicidade ou na venda de troféus ganhos durante o percurso (a história do desporto está cheia destes exemplos).
A exploração infantil no desporto é um tema tabu, apesar dos alertas entre nós pelo menos de Jorge Araújo, Mário Moniz Pereira, Paula Brito, Teotónio Lima, Olímpio Bento, José Manuel Meirim e Gustavo Pires. Aqui ao lado, em Espanha, Emilio Calderón fez acesas denúncias. Jacques Villiaumey e Jacques Personne, em França, foram ainda muito mais incisivos.
E embora o recente documentário “Athlete A” se foque nos abusos sexuais ocorridos na USA Gymnastics, assim como nas situações de protecção corporativista de vários dirigentes, podemos ver nas entrelinhas toda a exploração infantil existente nesta modalidade.
Nádia Comaneci foi campeã da Europa aos 13 anos e campeã olímpica aos 14, em Montreal (1976), enquanto Maria Sharapova fez a sua estreia no circuito profissional de ténis em 2001, com apenas 14 anos, em Indian Wells… Em 2008 Thomas Daley foi medalha de ouro na prova de salto de plataforma de 10 metros no Europeu de natação com 13 anos e em 2019 Chen Yuxi e Lu Wei foram, respectivamente, medalha de ouro e de prata na mesma prova no Mundial de natação, ambas igualmente com 13 anos.
Conseguiremos imaginar o que foi e como foi a vida destas crianças?
Submetidas a treinos bi-diários (ou até mais), com elevadas cargas horárias, com treinos de enorme volume e/ou intensidade, não sobra tempo a estas crianças para serem crianças. E os exemplos não estão só na ginástica, no ténis ou nos saltos para a água. Eles abundam na natação, no atletismo, no futebol…
Que infância teve Nicolás Millán que aos 14 anos (2006) se estreou na equipa principal de futebol do Colo-Colo, ou Iker Muniain (2007) que com a mesma idade foi chamado à equipa principal do Atlético de Bilbao, ou ainda Maurício Baldivieso (2009) que jogou os últimos 10 minutos do encontro entre o La Paz e o Aurora da I Liga da Bolívia aos 12 anos?
A futebolização da Escola é perigosa. É perigosa por causa da apropriação do futebol assim como da Escola e porque para além de instrumentalizar crianças – relembramos que são crianças dos 6 aos 10 anos – instrumentaliza a própria instituição."
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