"Certo é que estas semanas evidenciaram muito voluntarismo, reconheço, mas também muita improvisação e quase amadorismo
1. Passaram quase três meses, que em termos comunicacionais desportivos, sintetizaria em quatro pontos: a) inflação de efemérides e estatísticas, algumas bem adequadas, outras pouco interessantes ou para encher espaço e tempo; b) putativo mercado de transferências, num contexto que ninguém ainda é capaz de determinar; c) abundantes descobertas de craques no Sporting, até agora envoltos no nevoeiro de El-Rei D. Sebastião e ofertas mirabolantes e oníricas do mercado externo para parte do seu plantel; d) silêncio, tão suavemente saboroso, de programas televisivos que têm contribuído para tornar ainda mais doentio o ambiente à volta do nosso futebol.
Mas, três meses volvidos, aí está o futebol jogado. Desta vez, e por causa da pandemia, em modo de porta fechada e de televisão abonada. Dizem-nos que é a continuação do campeonato 2019/2020. Para mim, prefiro chamar-lhe «Torneio complementar de um Verão confinado». Não o estou a depreciar, apenas lhe estou a emprestar uma natureza diversa, que advém, não do desporto em si, mas de necessidade de gerar receitas para evitar outros males. Quem normalmente detesta o futebol costuma dizer que este é o ópio do povo (o que, em parte, é verdade). Mas, agora, vamos inovar nesta asserção: se o futebol é o ópio do povo, então dispensemos o povo...
Nestas últimas semanas, um dos pontos mais sensíveis que critiquei, a lógica competitiva, acabou por ser quase totalmente eliminado. Ainda bem. Refiro-me àquilo que se afigurou ser a regra para muitas das equipas: jogar em casa, lá fora.
O certo é que estas semanas todas evidenciaram muito voluntarismo, reconheço, mas também muita improvisação e quase amadorismo. A questão dos esádios foi elucidativa. Em poucas semanas, passámos de quase nada para praticamente tudo. Não sei se por milagre, se por condescendência sanitarista, ou se por manifesto facilitismo tão português. Começou-se por admitir jogar em regime concentrado e empilhado numa região do país, concretamente no Algarve. Depois, falou-se nos estádios do Euro-2004. Aí apareceu o Marítimo, com razão, a contrariar a acomodação e, rapidamente, se concluiu que o remoçado estádio dos Barreiros afinal poderia ser aceite. A seguir, lá vieram os outros clubes reclamar da falta de equidade. Um a um, todos os estádios foram considerados aceitáveis, desde que fizessem umas meras adaptações de sinalética e derrubasem uma e outra parede interior. Por fim, até o Famalicão, que antes anunciara a sua livre decisão de jogar em Barcelos, acordou para o assunto e viu o seu campo autorizado para o torneio. E quem ficou de fora? O Belenenses SAD que, aliás, é um pedinte de estádios, mas que, curiosamente, agora não vai pode jogar no Estádio Nacional (não deixa de ser patético que o Estádio que se chama Nacional e que serve para finais da Taça de Portugal, acabe por ser o único não aceite pelas autoridades sanitárias!). Resta o Santa Clara, que se precipitou e muito extemporaneamente emigrou para Lisboa. Deve estar arrependido... E é pena, porque, se as equipas forasteiras tivessem de ir aos Açores, haveria ainda uma maior amplidão da maga questiúncula de os seus jogadores viajarem com a equipa de arbitragem, como vai suceder nas viagens para o Funchal e, assim, contribuir para mais um berbicacho no nosso futebolzinho.
2. O dirigismo do futebol continua enredado em intestino. O comentarismo prefere sangue, em vez de reflexão e pedagogia. A claque quer bola lá dentro, mesmo que com batota. Os governantes querem a bola a rolar, para satisfação acrítica do povo.
Nesta atmosfera algo poluente, queria aqui registar duas entrevistas, que li neste jornal e que traduzem, de um modo claro e assertivo, problemas crónicos que atingem o nosso futebol e com cujos textos me identifico substancialmente. Não se trata de opiniões de leigos que como eu, sempre se sujeitam à crítica de o serem. Antes de depoimentos de quem viveu e vive no âmago do futebol. Sem hipocrisias ou umbiguismos. O primeiro é uma excelente entrevista de Jorge Pessoa e Silva ao treinador do Gil Vicente, Vítor Oliveira. Para quem não tenha lido o que disse o sabedor técnico português, quase me limito, com a devida vénia, a resumir as suas desassombradas ideias:
- Queremos a verdade desportiva? Menina, não queremos nada. O que vai começar agora é o futebol-negócio e, se quiserem, o futebol-política, porque dá muito jeito politicamente que o futebol recomece...;
- Sempre defendi que se deveriam criar as condições para todos jogarem nos seus estádios, para que verdade desportiva não seja violada ou defraudada;
- Já tive oportunidade de fazer quatro jogos em público e posso dizer que é horrível. Futebol é povo, futebol é adeptos, futebol é gente nas bancadas;
- Vejam o Sporting - Belenenses o Sp. Braga - Porto: vamos ter mais riscos nos cafés e nas casas uns dos outros do que em abrir parcialmente as bancadas.
- Fizemos duas semanas de trabalho de conjunto depois de uma paragem que foi quase o dobro das férias habituais dos jogadores, situação completamente nova e algo arriscada; sinceramente, não temos noção exacta da forma da equipa quando voltar a jogar:
- Tivemos oportunidade de ver jogos do recomeço na Bundesliga e vimos jogadores que se arrastavam penosamente no campo e têm acontecido várias lesões musculares, o que pode acontecer por cá;
- Andámos há dois meses em reuniões permanentes e o calendário só sai em cima do arranque.
- Estamos a fazer os fortes ainda mais fortes. Quem tem plantéis mais fracos e desequilibrados terá dificuldade em fazer as cinco substituições mantendo a qualidade da equipa. Assim pode ser afectada a verdade desportiva com uma alteração de regras em relação ao que vigorou toda uma época (a este propósito, acrescento eu que a ideia das 5 substituições, ou seja de meia-equipa que excluirmos o guarda-redes, já anda numa roda viva de contestação aos soluções: sim, talvez, não nas primeiras jornadas, sim a seguir a uma AG da Liga. Enfim mais uma originalidade);
- Assistimos a hesitações, falta de esclarecimento, os dirigentes atacam-de todas as maneiras, ninguém se entende e mesmo com a pandemia olham para o seu umbigo (acrescento eu: mas sempre dizendo que tudo é feito para bem e futuro da 'indústria');
- Poderia ter-se aproveitada esta desgraça para se reorganizar o futebol, torná-lo mais competitivo;
- Vamos continuar agora a ter os debates ridículos que há na televisão, que até podem dar audiência, mas não trazem nada de bom ao futebol português.
Esta entrevista assim como apareceu, logo se esfumou na erosão instantânea do actualismo. Por isso, aqui, fiz questão de a repristinar. Com um desabafo: se tivesse sido um treinador inteligentsia, sempre com tão boa imprensa, quantos encómios, quanta lucidez e coragem elogiadas, quanta referência neste tempo de crise, quantas panegíricos comentaristas e quantas notícias de telejornal!
3. Hoje, escrevendo eu me registo de recomendações e citações, chamo igualmente a atenção para excertos da entrevista de Jesualdo Ferreira à Bola TV. O consagrado técnico português, embora à distância medida pelo Atlântico entre Lisboa e Santos, oferece-nos a sua lucidez, experiência e sentido agudo de observação, para nos alertar para «a falta de inteligência para não se repetirem asneiras do passado», para o que é jogar nas actuais condições («basta olharmos para o futebol alemão. São as mesmas equipas, mas não é o mesmo jogo») e para o risco para os atletas («para o risco para os atletas («os jogadores vão estar com perdas difíceis de recuperar a curto prazo») e ainda para um aspecto de que pouco se tem falado, qual seja o das repercussões para a próxima temporada e como 2020/2021 (não) está a ser acauteladamente planeado, mais parecendo um buraco begro.
4. Façamos um exercício de ficção, imaginando que o presidente da CM Lisboa, Fernando Medina, benfiquista confesso, iria presidir a um órgão do SLB em próximas eleições. Cairia o Carmo e a Trindade. E, em meu entender, justificadamente. No futebol é como na política: não basta ser, é preciso também parecer. Sobretudo, se houver a possibilidade de conflito de interesses, o que, em situações similares, pode bem acontecer. Como seria? Quem tomaria posição: o presidente camarário ou o presidente de um órgão, mesmo que não executivo?
Mas devo estar errado. Para tal, trago à colação uma frase de Gaio Fernando Abreu, dramaturgo e escritor brasileiro (1948-1996): «Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia»."
Bagão Félix, in A Bola
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