"Um mês e meio de quarentena, de isolamento, de paragem total…
O mundo parou e nós parámos com ele, como não podia deixar de ser. Ficámos em casa, apercebemo-nos do que é o nosso lar, a família (seja pelo excesso de convívio forçado ou pela forçada proibição de convívio) e daquilo que realmente é importante: a saúde.
E aqui, somos forçados logo a pensar, qual a saúde que se encontra em causa, pois que um dos mais elementares direitos de que o ser humano (deve) gozar e de que o Estado é garante, desde logo a nível constitucional, é o que mais discussões tem gerado, mesmo sem nos darmos conta.
Por um lado, o decretamento das medidas de emergência, como garante da saúde colectiva, em estado pandémico, para evitar maior propagação e proporções catastróficas a nível de perdas humanas, o que facilmente se entende. Porém, por outro, a questão da economia e da paragem da mesma e do impacto que isso vai ter na vida de todos. A queda da economia implica a perda de milhares de empregos, actualmente implica a perda de um terço da retribuição por milhares de trabalhadores e faz com que se denote uma perda significativa do poder de compra. Como efeito cíclico e de bola de neve, numa visão muito realista de que não girando o mundo à volta de dinheiro, sem ele também não vive, o direito à saúde encontra-se igualmente comprometido pelas medidas pandémicas, pois que, sem dinheiro, há um sério risco de várias famílias se confrontarem com o flagelo da fome, da falta de dinheiro para medicação em caso de problemas de saúde, falta de dinheiro, em suma, para prover às mais básicas necessidades de sobrevivência do ser humano, o que, em si, encerra um perigo ao direito à saúde de cada indivíduo.
E, logo aqui, somos confrontados com este primeiro dilema. Contudo, fosse apenas este que assolasse o direito à saúde… Numa outra vertente, é indiscutível a consagração constitucional do direito à saúde e das medidas que o Estado deve promover para que este direito seja salvaguardado. Contudo, não menos é verdade que, no mesmo texto fundamental, o direito ao desporto e à actividade física tem também o seu lugar de destaque.
Mais do que ponto assente é o facto de que o exercício físico faz bem à saúde, porém, agora, em virtude de um ataque global que, no confronto de direitos conflituantes - direito à saúde vs. direito à actividade física e ao desporto -, "ganhou aos pontos", a actividade física comum foi duramente limitada, fechando-se ginásios, autorizando-se apenas passeios de curta duração (ainda por definir o que se entende por tal conceito, sabendo apenas que a OMS recomenda a prática diária de 30 minutos de exercício) e pedindo-se às pessoas para restringirem a circulação ao mínimo indispensável, o que, quer se queira quer não, limita igualmente qualquer tipo de exercício físico ao ar livre. Daí poderão advir vários problemas de saúde, aquela que se tenta proteger com tanto sacrifício nacional.
Depois, temos também de ponderar o que integra o conceito de saúde e aí, incontornavelmente, teremos de atender à saúde física, mas também à saúde mental. E mais uma vez temos o confronto com o dever de salvaguardar o colectivo face a uma pandemia, porém como ficará o colectivo, em termos psicológicos, ao fim de um período de confinamento?
Não haverá o risco do confinamento prolongado causar doenças do foro psíquico que, a médio/longo prazo, poderão ter consequências a nível de produtividade no trabalho e, deste modo, impacto indirecto na economia? Estamos preparados para isso? Temos um plano B?
Noutro plano, há também que equacionar a outra vertente do direito constitucional à actividade física: o desporto. Aqui, pensamos no desporto de alto rendimento e à medida que escrevemos, confrontamo-nos com o pensamento de que neste caso, o combate entre os direitos fundamentais tem ainda mais intervenientes do que nos cenários anteriores, muito similar a uma "royal rumble" de WWE (que, a propósito, foi considerada como bem essencial para o Estado da Flórida e, portanto, continuou com a sua actividade).
Num canto, temos o direito à saúde em contexto pandémico, então, proibe-se os eventos desportivos (com o futebol, naturalmente, a sofrer o maior golpe), fecham-se os pavilhões desportivos, proibem-se treinos… Noutro canto, temos a economia desportiva a bradar: direitos televisivos, revenues, patrocínios, merchandising… Como fazer para sustentar esta máquina e pagar ordenados aos atletas, se os mesmos estão impedidos de prestar o grosso do seu trabalho?
E pensando micro (e não é preciso sair do futebol): meio da tabela da 1ª divisão para baixo… Como manter os atletas ao serviço, quando não se consegue cumprir com o dever contratual de pagamento de salários? Começam os incumprimentos, a falta de dinheiro para os atletas sustentarem a sua casa e família e, voltamos a ter um problema - real - de falta de saúde causada por questões tão básicas como falta de dinheiro para comprar comida (como, aliás, já começou a acontecer, em escalões inferiores). E é este direito que está em confronto no terceiro canto.
No quarto canto então, temos o direito à saúde individual de cada atleta. O desporto, especialmente o futebol, mexe com milhões e, naturalmente, qualquer paragem não programada, por mais pequena que seja, causa prejuízos astronómicos (quanto mais uma paragem de dois meses quase, numa altura crucial para qualquer campeonato, como seja a sua ponta final).
Naturalmente, os prejuízos monetários são enormes e a dificuldade de coordenar esta finalização de épocas com o início de uma próxima é hercúlea pois que não basta apenas atentar ao campeonato nacional, mas também a outras competições internas como taças (no nosso caso, a de Portugal e da Liga), bem como com as competições europeias, selecções e seus compromissos, etc.
Em Portugal, conseguimos ver perfeitamente o impacto que o futebol profissional tem, pois que a decisão para os campeonatos amadores (CNS e Distritais) já foi tomada - término de todas as competições em todos os escalões nas modalidades reguladas, sem definição de campeões ou efeitos a nível de subidas ou descidas de divisões (uma espécie de reset à máquina), podendo agora concentrar-se em pleno na preparação da época que se aproxima, de uma forma ponderada e concertada face ao que se adivinha que vá ser a nova realidade após o estado de emergência -, a verdade é que no futebol profissional a decisão não foi assim tão fácil, consensual e definitiva…
De facto, no momento em que se escreve, existem notícias que dão por facto assente que as competições profissionais são para terminar, dê por onde der. O problema é que é apenas isso que se sabe, ficando por responder o mais importante: Como? E quando? Alguns clubes nacionais, inclusive, já voltaram aos treinos, respeitando, até, as normas de segurança emanadas pela DGS. Contudo, não se percebe como, uma vez que, segundo o Anexo I do Decreto 2-C/2020 (anexo que já vem desde o Decreto 2-A/2020, que determinou o primeiro estado de emergência) as instalações desportivas têm de se estar encerradas.
Porém, foi notícia de jornal de horário nobre que existiam equipas que já haviam retornado aos treinos e, da parte governativa, nem um comentário foi tecido… o Estado, mais uma vez, fecha os olhos ao futebol e deixa-o regular-se na sua própria autonomia, deixando-o, como sempre, reinar no seu mundo à parte, muito à semelhança do que acontece com o Parlamento. Contudo, no mesmo Anexo I, actividades comerciais como cabeleireiros, se forem apanhados a laborar e em plena actividade, porque o pequeno comerciante esgotou todas as suas economias e não teve apoios estaduais, resolveu arriscar para "fazer uns trocos" de modo a colocar comida na mesa, correm o risco de pagar pesadas coimas por desrespeito da obrigatoriedade de encerramento de estabelecimento. Igualdade relativa, talvez…
Mas o cerne do que está em causa com esta conivência à máquina desportiva futebolística, para completar o nosso canto do ringue, reside no direito à saúde dos desportistas, atletas de alta competição. Estes direitos estão a ser completamente desconsiderados (ainda que, aparentemente, se estejam a tomar as precauções determinadas) pois que, ao terem de retornar aos treinos e jogos em contexto pandémico e de emergência, por maiores que sejam os cuidados que se tenham (jogos à porta fechada ou com público reduzido, limitação de pessoal envolvido na logística dos jogos), fazem-no por obrigatoriedade de um contrato de trabalho (atenção que há a questão dos contactos que findam com o fim da época desportiva, que, neste momento, é matéria altamente discutida) e terão de se sujeitar às medidas que forem estipuladas por terceiros e isso já começou a acontecer no momento em que em pleno estado de emergência, conforme acima indicado, já tiveram de ir treinar, ainda que em instalações que se determinaram encerradas.
Isto para já não falar na vertente do que representa em termos de desgaste profissional (uma vez que, como se sabe, o futebol é uma profissão de desgaste rápido) o impacto que terá uma solução que preveja uma quantidade concentrada de jogos num curto espaço de tempo, solução que tem sido avançada para "apanhar o passo" entre o término desta época, o começo da próxima e ainda as competições externas. Em termos de condições físicas, tal poderá implicar o fim de carreira profissional para alguns atletas, cujo corpo acuse a pressão de uma maior carga de jogos no calendário desportivo ou eventuais lesões que se possam verificar, que comprometam o rendimento desportivo a curto e médio prazo.
But, the show must go on…
Mas, mais uma vez, o que se percebe é que se arriscam pessoas, por uma questão de entretenimento pois que, conforme se conseguiu perceber com esta pandemia, não precisamos assim tanto de futebol e futebolistas, como precisamos de saúde e de médicos.
Assim, não há soluções perfeitas, não há soluções consensuais, não há grandes remédios ou milagres, mas há umas melhores que outras e é necessário mais do que decisões unânimes, decisões harmoniosas e equilibradas, que permitam assegurar às pessoas que a salvaguarda da sua saúde foi tida em consideração, seja qual for o sector que esteja em causa."
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