"A centragem, no positivismo das ciências Empírico-Formais, de uma licenciatura em Desporto não me parece correto. Como detesto prestar-me a confusões, começo já por afirmar que o Desporto é, para mim, um dos aspectos da Motricidade Humana, quero eu dizer: do movimento intencional e solidário da transcendência e, como tal, só deverá teorizar-se e praticar-se, no âmbito das Ciências Hermenêutico-Humanas (ou Sociais e Humanas). O Desporto não é uma Ciência da Natureza, mas uma Ciência Humana e portanto com a metodologia peculiar de todas as Ciências Humanas. Uma séria e bem fundamentada formulação de um problema desportivo exige a mostração dos resultados da “práxis” desportiva, da filosofia que os norteia e da circunstância que os condiciona. E o que estuda qualquer ciência humana? Se bem penso (e aqui estou bem acompanhado): qualquer ciência humana estuda a “condição humana”. Embora cada uma destas ciências, com o seu objecto de estudo próprio, intransferível. Como adverte um dos pioneiros, em Portugal, destes assuntos, o Prof. Adérito Sedas Nunes, nas suas questões preliminares sobre as Ciências Sociais, livro editado pela Presença: “Toda a ciência, seja qual for, só está propriamente constituída como tal, isto é,, como corpo de conhecimento e de resultados, a partir do momento em que seja possível afirmar que o sistema de produção que a produz já construiu o seu próprio objeto científico” (p. 33). Ora, o objeto científico do Desporto é, em primeiro do mais, o ser humano num tipo de movimento intencional e solidário, onde há jogo, agonismo, instituição e projecto. É evidente que, para uma visão nova do Desporto, bem é que o Desporto se transforme numa “organização aprendente”, direi mesmo, com fria objectividade, uma organização que saiba que a história das ciências não é apenas linear e cumulativa mas, de quando em vez, com uma “filosofia do não”, que chega a materializar-se em “cortes epistemológicos”. Ou seja, a história das ciências é contínua e descontínua.
Privados de aparato conceptual e histórico, incapazes de uma crítica ao saber que lhes foi transmitido, encontram-se “lentes”, na Universidade, com o culto abusivo da repetição, contaminados por uma “filosofia espontânea” que, como se sabe, é menos ciência do que ausência de actualizada informação. Lembram-se os meus fiéis leitores da Terceira Vaga, de Toffler, com a caracterização da Terceira Vaga (Revolução Informacional), que se seguiu à Agrícola (Primeira Vaga) e à Industrial (Segunda Vaga). E ainda acentuando as descontinuidades inerentes a qualquer mudança de paradigma. Na Educação Física e no Desporto, onde reinava uma “cultura epistémica” cartesiana e positivista e mecanicista portanto, logo se rejeitou (e, em largos sectores, rejeita ainda) um corte epistemológico. E, pior ainda, deixou de estudar-se epistemologia, assim se ignorando sobranceiramente, a “migração conceptual”, típica de uma Sociedade Informacional. Esqueço as palavras desalinhadas e febris de alguns que têm nos olhos espessas aranhas de conservadores pouco informados e passo a apresentar o que supõe a motricidade humana:
1. Uma visão sistémica do ser humano (que o mesmo é dizer: em termos de relação e de integração). Até ao século XX, segundo Peter M. Senge, no seu The Fifth Discipline, à concepção de Homem presidia o conceito de Homem-Máquina, e depois o de Homem-Orgânico e, por fim, o de Homem-Sistémico. Hoje, é o Homem-Aprendiz o que melhor pode retratar o sujeito de uma “organização aprendente”. Mesmo não pondo de lado Peter Senge, continuo com a minha visão sistémica do ser humano, onde o Homem-Aprendiz cabe também perfeitamente.
2. A existência de um ser não especializado e carenciado, aberto ao mundo, aos outros e ao Absoluto. “O homem excede infinitamente o homem”, de Pascal, dá bem a medida do dinamismo de transcendência que o habita.
3. E, porque aberto ao mundo, aos outros e ao Absoluto, e deles carente, um ser práxico, procurando, pelo trabalho e pela imaginação e principalmente pelo amor, encontrar e produzir o que lhe dá vivência e plenitude. “O homem é um processo. Precisamente o processo dos seus actos”, disse-o António Gramsci, na sua Concepção Dialéctica da História. Mas os seus actos, porque são protagonizados por um ser incondicionado, podem transformar-se em vias de libertação integral.
5. E, porque ser práxico, com acesso a uma experiência englobante, agente e fautor de cultura, projecto originário de todo o sentido, memória do mundo e “ser axiotrópico” (que persegue, apreende, cria e realiza valores). Não é ao nível do puramente animal, mas do intrinsecamente cultural e religioso, que o Homem conhece e se conhece, transforma e se transforma. E, porque um ser intrinsecamente cultural e religioso, capaz de descobrir, na prática desportiva, uma autêntica manifestação artística.
Quando Pierre de Coubertin idealizou, antecipou os Jogos Olímpicos Modernos, logo neles integrou um encontro, um diálogo Desporto-Arte. Porquê? Porque, no meu entender, o Desporto é o fenómeno cultural de maior magia, no mundo contemporâneo. E Pierre de Coubertin cedo percebeu que… o desporto fala grego! E, na Grécia Antiga, nos Jogos Olímpicos, o Desporto entendia-se como um importante espaço de encontro fraterno, entre o Desporto e a Arte. Demais, o Desporto é tão sério como qualquer das mais sérias actividades humanas. Aliás, apetece acrescentar que o Desporto é a mais acessível das artes populares. Eu adito ainda: é a mais popular das artes pós-modernas. E tanto assim é que os grandes campeões do Desporto têm um aplauso e um culto que mais ninguém tem. Vejam o que se passou com o Pelé e o Maradona. Vejam o que se passa com Ronaldo e Messi. Embora eu que, em determinada fase da minha vida, acompanhei de perto o futebol espanhol, lastime que, entre os melhores futebolistas de sempre, se esqueça o Di Stéfano…
De acordo com o que li, já não sei onde, “o desporto é um tipo de arte”. De facto, as fintas do Messi, do Maradona e do Garrincha, os golos do Ronaldo, do Eusébio e do Ronaldinho Gaúcho transcendem a esfera limitada do futebol e são arte, quero eu dizer: provocam gozo estético. Já se encontram autores que chamam ao Desporto a “oitava arte”. É verdade que o Desporto não produz uma arte perene, permanente, quero eu dizer: que possa contemplar-se, ano após ano. Mas o fenómeno ocorre também em qualquer arte performativa. Na música, na dança, no teatro, findo o espectáculo, findou, para o público presente, a genialidade dos intérpretes e a mensagem dos autores das obras apresentadas. As relações entre o Cinema e o Desporto permitem ao Cinema perenizar, universalizar os espectáculos desportivos mais publicitados. O cinema, com linguagem diferente da prática desportiva, mas ambos com uma fundamentação semelhante – ambos são movimento! É conhecida a tese de Walter Benjamin, ao comparar o Cinema ao Desporto, argumentando que o Desporto e o Cinema criaram, como nenhuma outra arte, uma íntima e viva proximidade, entre os artistas e o público. E não assistiu o Walter Benjamin, que faleceu em 1940, a um Barcelona-Real Madrid, ou até a um Benfica-Sporting ou, no Brasil, a um Fla-Flu. Será por acaso que há mais selecções filiadas na FIFA do que estados-membros, na ONU?... Discordo abertamente do antagonismo que Karl Popper estabelece entre “teorias científicas” e “teorias metafísicas”, apoiando-se ele na convicção que só as “teorias físicas” poderiam ser infirmadas. Não há desporto, há pessoas que praticam desporto. E a dignidade da pessoa humana, que está na base do desporto moderno, pode perfeitamente confirmar-se ou infirmar-se. Designadamente quando se desafia um desporto que parece nascer unicamente das leis do mercado e com a arrogância de quem tudo julga poder comprar… até as consciências!
A motricidade humana, como movimento intencional e solidário da transcendência, traz-nos à vista e à mente, com primazia, a evidência de que no Desporto se enxerga a complexidade humana, movimentando-se, solidariamente, para transcender e transcender-se. A transcendência dita e determina os grandes objectivos do Desporto, Dança, Ergpnomia, Reabilitação, Motricidade Infantil, etc., etc. E o que significa, para mim, a transcendência? Sublinho, em primeiro lugar, esta ideia-mestra: pela transcendência, o ser humano, em geral, e o atleta em especial, tomam consciência que não são objectos, mas sujeitos, da História; que não são apenas reflexos da sociedade que os rodeia e os condiciona, mas projectos de um mundo que importa reinventar; que a própria sobrevivência do ser humano, neste mundo, solicita a cada um de nós a capacidade de transcendência, em relação aos nossos defeitos e limitações; que evolução é transcendência e portanto a negação de qualquer espécie de determinismo. Servindo-me de conceitos de Teilhard de Chardin, a passagem da cosmogénese à biogénese e, emergindo da biogénese, a noogénese (ou antropogénese) dizem-nos que há três grandes etapas, na evolução do mundo: matéria, vida e espírito. Na sua obra, O Fenómeno Humano, ele tenta explicar (e provar) a transição da matéria inorgânica à matéria orgânica, ou seja, das mega-moléculas aos micro-organismos e destes até ao longo caminho da consciência reflexiva, através da lei complexidade-consciência, isto é, a progressiva complexidade da matéria anuncia o surgimento do espírito. E os vínculos que unem o ser humano ao universo são assim evidentes. “É certo que o animal também sabe. Mas, com certeza, ele não sabe que sabe” (Le Phénomène Humain, Oeuvres, t.1, p. 78). E tudo isto acontece, “não por simples mudança de grau, mas por mudança de natureza, resultante de uma mudança de estado” (op. cit., p. 182).
Se bem penso, todo o universo se apresenta com uma história, na qual encontramos a transcendência que da noogénese nos pode conduzir a uma vivência do Absoluto. A matéria transcende-se, para que a vida nasça e a vida transcende-se, para que a cultura, o Homem nasçam e o Homem transcende-se porque toda a humanização do Homem supõe a hominização de Deus. Será por acaso que é tão visível a religiosidade dos atletas da alta competição desportiva? Do que venho de escrever se infere que, porque em perene movimento, o Homem, a Vida, a Sociedade e a História são, em qualquer circunstância, tarefas por realizar. O reaccionário, o conservador, o sectarismo estreito e até, em muitos casos, a tradição da cultura ocidental dificilmente aceitam as relações de fé do ser humano consigo mesmo e com Deus. E de uma fé, porque resposta ao apelo de Deus, que seja recusa e protesto, em relação a todas as alienações, a todos os determinismos. À luz da teoria da motricidade humana, ou seja, do movimento intencional e solidário da transcendência, cabe também ao Desporto pensar o ser humano, buscando corajosamente os argumentos humanos que possam explicar-nos a presença de Deus em nós e no outro, criatura de Deus, homem ou não. Já há muitos anos Ortega y Gasset escreveu que onde acaba a Física não terminam as questões, pois que o ser humano, que o cientista é, necessita de uma verdade integral, que excede, em muito, os limites de uma ciência. E, depois, porque esta vida é tão curta, não podemos aguardar indefinidamente, pelas inadiáveis respostas que nos ajudem a entender a nossa aventura existencial. Volto ainda à motricidade humana, para sublinhar que, pela transcendência, o Desporto nos surge como um feixe de questões medularmente axiológicas – o Desporto, o subsistema de uma nova ciência humana, a ciência da motricidade humana!"
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!