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domingo, 7 de julho de 2019

Nem tudo é política...

"Nem tudo é política, mas a política está em tudo. No entanto, com o advento do capitalismo neoliberal, a política diluiu-se, proporcionando a hegemonia total a um ditatorial economicismo. Tudo se tornou débil e fraco… menos uma certa economia! O “panem et circenses”, com os seus perturbantes antagonismos, entre nós, Porto-Benfica, Sporting-Benfica e outros patetas e patéticos exacerbamentos, servem, com precisão matemática, para adormecer as pessoas à recusa de uma sociedade sem uma pauta de valores humanizantes.
Quando comecei a teorizar a Ciência da Motricidade Humana (CMH), um objectivo eu tinha (e mantenho) sobre os mais: rejeitar o estafado mecanicismo cartesiano e defender um dualismo epistémico, onde o sujeito não se confundisse com o objecto, onde o sujeito se respeitasse e cuidasse como filho de Deus. Não escondo, nem deveria fazê-lo, o muito que aprendi com Pierre Teilhard de Chardin: “Tradições de todos os géneros, conservadas pelo gesto ou pela linguagem, escolas, bibliotecas, museus, sistemas diversos de direito, de religião, de filosofia ou de ciências – tudo o que se acumula, se organiza, se encontra e se fixa aditivamente para formar a Memória Colectiva da Humanidade. No Homem, por uma espécie de invenção genial da Vida, a hereditariedade, até aí sobretudo cromossómica, isto é, veiculada por genes, torna-se sobretudo noosférica, isto é, transmitida pelo meio ambiente, pela cultura”(l’Avenir de l’Homme, Tomo V das Oeuvres). É como sujeito livre e responsável, dotado de consciência e de cultura, que o homem-desportista deverá observar-se e estudar-se. Ainda há pouco, na revista do Expresso (2019/6/29), Isabelle Hupert, atriz francesa de inegável talento, afirmava convicta que a pessoa da actriz, do actor está antes da personagem. Eu também digo que não há fintas, há pessoas que fintam; não há remates, há pessoas que rematam; não há defesas, há pessoas que defendem – se eu não conhecer as pessoas que fintam e rematam e defendem, jamais compreenderei as fintas, os remates e as defesas. São pessoas que fazem desporto, são pessoas que desejam desporto, são pessoas que dão sentido ao desporto, são pessoas que vivem o desporto.
E a vida é um termo polissémico, é tanto biologia como cultura. E, porque é cultura, enquanto o “esprit de finesse” de Pascal não informar os nossos métodos, a todos os níveis, no desporto, o cartesiano “esprit de géométrie” de certos políticos, de certos universitários, de certos treinadores, de certos dirigentes não deixará de produzir autênticos aleijões, verdadeiras perfídias e aleivosias.
Por outro lado, verifico, com alguma apreensão, que a maioria dos treinadores da alta competição desportiva, nem lêem, nem sabem o que hão-de ler. Nas minhas aulas, no INEF, no ISEF e na FMH, eu dizia, frequentemente, aos alunos: “Leiam boa Literatura. Leiam o Régio, o Torga, o Manuel Alegre, a Sofia, o José Cardoso Pires, o Fernando Namora, o Urbano Tavares Rodrigues, o António Lobo Antunes, o José Saramago, etc. É que a Literatura é vida e tem, por isso, muito a ensinar à prática desportiva”. E cheguei a recitar-lhes poemas de inúmeros poetas. Como este da Sofia:
“Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça,
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos.
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos.
 Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos 
A paz sem vencedor e sem vencidos”.
O Desporto é vida e tudo o que for vida (e vida tão luminosa de tão pura) concorre ao progresso, ao desenvolvimento do Desporto. Quando digo que “o desporto é mais do que desporto” não quero dizer outra coisa. Mas interessa também que os “agentes do desporto” se reconheçam, na prática desportiva, como Sujeitos e não como objectos. E que portanto só como ciência hermenêutico-humana o Desporto se pode praticar, teorizar e estudar.
Por vezes, adormeço, ao escutar algumas versões em circulação, sobre o Desporto mas, podem crer, é mais por irónico desdém do que por me sentir vencido. De facto, há um tema forte e fundo, que volta sempre, como uma obsessão, ao estudo do treino e da competição, no Desporto: a concepção mecanicista do organismo humano e a importância mítica (porque é um mito mesmo) da tecnologia no surgimento de novos génios ou talentos. Esta atitude resulta de uma visão cartesiana do corpo, observado como uma máquina que requer a presença do técnico, para consertá-la, quando sofre uma avaria. E tudo isto se faz, sem ter em conta os aspectos psicológicos, sociais e morais da enfermidade. De acordo com o modelo biomédico de pendor cartesiano, só o médico sabe o que importa à saúde do atleta, pois que todo o conhecimento, acerca da saúde, resulta da observação objectiva dos dados clínicos, dos testes laboratoriais e da medição de parâmetros unicamente físicos. Não se põe em causa o trabalho indispensável do médico, mas que não se esqueça a avaliação do estado emocional, da história familiar e da situação social do atleta, ou do paciente.
Um contexto biomédico reducionista é, frequentemente, transferido para o treino e o ser humano não é uma simples máquina alopoiética, mas autopoiética, quero eu dizer: que a si mesmo se faz. Não posso deixar de fazer alusão às abordagens estritamente fisicalistas e às conclusões que guardam, para a neurobiologia e a anátomofisiologia, as “causas das causas” dos principais factores do treino e da competição. Métodos e técnicas de complexidade e delicadeza, sempre crescentes, não se coadunam com uma exígua base conceitual do treino desportivo e da própria medicina desportiva. A interacção corpo-mente-cultura-desejo-sociedade; a adopção de um conceito holístico e complexo e ecológico de saúde – exigem uma reeducação radical dos “agentes do desporto”, incluindo aqui os médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, etc. O diagnóstico médico (sempre indispensável) não dispensa e supõe bem mais do que os métodos da ciência natural.
É conhecida a frase célebre de Platão, na República: felizes as cidades cujos filósofos são reis, ou cujos reis são filósofos. Aristóteles, na Política, retomou o projecto da República de Platão: fundamentar o Império na Lei e a Lei no Bem. Com o triunfo da mecânica newtoniana, estabeleceu-se o continente físico-matemático, como o de maior importância e relevo, no âmbito do conhecimento científico. Ao mesmo tempo que, paulatinamente, a filosofia e a teologia eram dispensadas de pensar, de criticar a ciência, pois que tudo, no mundo dos homens e das mulheres, deve apresentar um objectivo supremo: o bem comum! O todo é necessariamente anterior à parte e nem a física, nem a matemática, nem a economia deverão esquecer que são partes do mesmo todo. Ora, é sob a hegemonia absoluta dos mercados que se planificam, se estruturam, se propõem, se concretizam os actuais programas políticos. Vivemos num tempo em que tudo é mercadoria. Veja-se o futebol: são os números exorbitantes das quantias gastas na aquisição do atleta que, em primeiro lugar, nos dizem o valor futebolístico de um jogador. E, assim, a verdade da política é a economia! A economia surge como a imagem perfeita de uma política ideal. “Platão concebeu uma ideia tornada clássica, segundo a qual a tirania é o irracional total, o poder sem-Razão (…), o devir-corpo da alma, a alma irrecuperável, completamente perdida. A tirania será o império da paixão, da quase-animalidade, a expressão política do Mal (Sousa Dias, Razão e Império, Livraria Civilização Editora, p. 82). E, na economia imperante, os valores mais publicitados e cultuados são precisamente os que podem quantificar-se monetariamente. E a ênfase atribuída à quantificação confere à economia a aparência de uma ciência exacta cartesiana-newtoniana, onde o qualitativo concreto se desconhece ou despreza, onde o quantitativo abstracto se aceita ou idolatra. Mas não me adianto mais, no curso deste tema. Onde há política, necessariamente. No termo da vida, o chão que percorremos vai-se cobrindo de muitos gestos inúteis, de muitos sonhos falhados. Ser velho é um permanente ato de humildade…"

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