"Como tantas outras coisas na sociedade actual, o periférico merece mais atenção que o substancial no futebol. Este decepcionante Mundial pretende maquilhar as suas carências com a instalação do VAR como novo altar do futebol, uma reinvindicação tão lamentável que produz um efeito alienante. O suposto novo sistema de justiça oferecia o mais parecido ao rigor infalível, mas para cada decisão correta produziu-se o mesmo número de erros. Acções iguais foram decididas de maneira contrária. Jogadas que mereciam a verificação do VAR não foram analisadas. Nogeral, os maiores acertos ocorreram em episódios mais relacionados com o velho olho de falcão, uma técnica simples, barata e objectiva, do que com as deliberações de um árbitro e um grupo de colegas sentados em frente a um painel de monitores num escritório às escuras. Fala-se do VAR e fala-se de uma mudança de tendência no futebol para tentar justificar o medíocre desenvolvimento de um Mundial que se caracteriza pelo número sem precedentes de golos marcados em livres, pontapés de canto e penáltis. Isto é, através de aspectos importantes, mas bastante aleatórios e pouco relacionados com o jogo.
Com este material deficiente, foi construído um Mundial que os seus partidários defendem com uma velha e repetida canção: impõe-se o jogo físico e a qualidade atlética. É o típico mantra que se estende quando o futebol se torna medíocre. Um olhar sobre a história desmente a ideia desta nova hegemonia física. Inglaterra ganhou o Mundial de 1966 com um estilo que se catalogou como dinâmico, potente e atlético, ao contrário do domínio do Brasil de 1958 a 1962. Quatro anos depois, no México 70, os brasileiros foram mais brasileiros que nunca e maravilharam o mundo com o futebol mais criativo e versátil que se havia visto até então. O aparecimento da Holanda em 1974 ajudou a finalizar o trabalho que havia começado no Ajax no final dos anos 60. Os holandeses destruíram o catenaccio, instalado pelos italianos como o supremo exercício de astúcia táctica, destinado, segundo os seus propagandistas, a governar o futuro do futuro. Cruyff e companhia acabaram com esse mito.
A Alemanha ergueu-se durante anos como grande representante do futebol atlético, tão espectacular que acabou por preencher as suas equipas com avançados de dois metros, em troca de renunciar o brilhante desempenho que caracterizou as equipas do primeiro Beckenbauer - o segundo Beckenbauer foi um factor fundamental para a mudança para o futebol opaco -, Overath, Haller e Netzer. Aquela Alemanha industrial e física acabou por desertar. Precisou de se regenerar pelo caminho oposto. Escolheu a técnica como moeda de câmbio depois da infame passagem pelo Europeu de Portugal, em 2004. Em 2006, uma hesitante mas atraente Alemanha avançou um modelo com bastantes referências espanholas. Durante dez anos, Espanha e Alemanha foram as duas grandes referências, com um estilo que agora foi declarado morto.
A realidade é diferente. O modelo não está morto. O que não garante nenhum estilo é jogar bem. Espanha jogou muito mal no Mundial da Rússia, em grande medida por um assunto nada relacionado com a maneira de interpretar o futebol. A contratação do seleccionador Lopetegui pelo Real Madrid, anunciado dois dias antes do Mundial, actuou como um torpedo na linha de água de Espanha. A confusão e o pessimismo presidiram a decepcionante actuação de uma equipa que pedia aos gritos a sua eliminação. Espanha não foi prejudicada pelo seu peculiar modelo por uma razão tão velha como o futebol: pode-se jogar muito mal com qualquer estilo.
A eliminação precoce de alemães e espanhóis significa o declínio das suas mensagens? Claro que não, embora os dois países precisem de algumas revisões. Espanha confundiu a retórica com o jogo. Refugiou-se na insignificância, talvez porque a nova geração não tem a personalidade, nem o talento, dos seus brilhantes antecessores. Analisando bem, é quase impossível reunir numa equipa Xavi, Iniesta, Busquets, Xabi Alonso, Cazorla, Silva, Fàbregas, Villa, Fernando Torres, Puyol, Sergio Ramos e Casillas, todos no auge das suas carreiras. Este tipo de geração espontânea dificilmente se produz no futebol. A Alemanha foi vítima de um clássico dilema que angustia os treinadores. Joachim Low escolheu os clássicos - Neuer, Boateng, Hummels, Khedira, Ozil, Kroos e Muller -, um sinal típico de respeito e de agradecimento dos treinadores aos seus melhores pretorianos. Vários deles começaram o declínio. Boateng, Hummels, Ozil, Khedira e Muller cada vez impressionam menos.
A repentina eliminação de Espanha e Alemanha gerou um movimento de resposta rápido. Se eles não estão, que modelo lhes sucederá? À falta de uma resposta convincente, regressa o tópico do futebol atlético. A presença de Suécia, Inglaterra e especialmente França funciona como um álibi para a opinião dominante. Quem tiver visto a Suécia sabe é a mesma selecção de sempre: hermética, sólida, pouco imaginativa, beneficiada pela ausência de Ibrahimovic, um tóxico grande talento. A Inglaterra jogou mal ou muito mal. A partida contra a Colômbia foi um monumento ao horror. Não avançaram pelo jogo, nem pela exibição, nem pela ordem. Desta vez torceram o seu mau destino e ganharam nos penáltis.
Diz-se que a França é a apoteose do futebol que aí vem. Talvez, mas a mesma coisa foi dita há 20 anos, quando ganharam o Mundial. É verdade que combinaram talento e um físico portentoso em pessoas como Mbappé, Pogba, Varane e Umtiti. Não é uma novidade: Thuram, Desailly, Vieira pareciam superhomens no final dos anos 90. No entanto, aquela equipa precisava de Zidane como esta requere Griezmann. Caso contrário, são apagadas as luzes dos franceses. O surgimento do jovem Mbappé como próxima grande figura do futebol convida a pensar que ele actuará como modelo de referência para as próximas gerações. Também não é uma novidade. Ronaldo Nazário, o grande avançado brasileiro cheio de lesões, impressionou tanto ou mais que Mbappé. Gente como Cristiano Ronaldo ou Gareth Bale tiveram qualidades atléticas comparáveis às do magnífico avançado francês. O interessante de Mbappé é a capacidade de adicionar um grande talento futebolístico às suas espectaculares condições físicas. Primeiro o futebolista, depois o atleta.
Enquanto se santifica a potência atlética e tudo isso, não é demais recordar que o melhor futebolista deste Mundial é um médio que mede 1,72, é leve como uma pluma e tem 33 anos de idade. Chama-se Luka Modric e é um manual ambulante. Algo parecido ocorre com Ivan Rakitic. Em muitos aspectos representam o oposto das teses que se manejam neste Mundial de futebol raquítico. Que estranho é o futebol: ou coloca o talento sob suspeita ou o subestima."
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