"Na última semana passou mais ou menos despercebido, entre o tradicional ruído em torno do futebol português, um estudo da UEFA que limitava a 14 por cento a importância da bilheteira no bolo das receitas dos clubes portugueses. Menos de metade dos direitos televisivos, por exemplo, e menos de um quarto se juntarmos aos direitos as receitas da UEFA e da publicidade.
Aquela velha máxima do «Pago as minhas quotas, tenho direito a» já fez muito mais sentido. A verdade é que, nos dias que correm, os adeptos que pagam o futebol não são os que vão ao estádio, mas os que ficam em casa a ver na televisão.
Aceite: o seu clube já não precisa assim tanto de si.
Claro que há o valor sentimental e um estádio cheio dá imagens bem mais bonitas na televisão que, efectivamente, paga os ordenados aos craques que alimentam os seus sonhos. Naturalmente, não há, também, comparação sequer entre o grito de golo em casa ou no café ou em conjunto com milhares de outras pessoas com o coração tão cheio quanto o seu. Mas já é quase só isso. O resto é merchandising, que galga terreno ano após ano.
E a somar a esta realidade que começa a ser comum em todo o mundo, há a particularidade de a paixão pela bola em Portugal ser tripartida. O que leva a que, com uma ou outra excepção, o grosso dos clubes estejam condenados a ser aquela invenção tão lusitana que dá pelo nome de «segundo clube». Ainda recentemente num Tondela-Rio Ave vi cachecóis do Sporting na bancada. O frio e a cor não justificam tudo.
A verdade é que estamos numa era em que se aceita de bom grado que os clubes fechem os jogadores em redomas, limitem o contacto às formais sessões de autógrafos, moldem os seus discursos a ponto de praticamente não se extrair qualquer sumo e ainda limitem as intervenções ao mínimo aceitável. Os adeptos abdicaram do contacto com os ídolos porque foram convencidos que é isso o que é preciso para ganhar. Festejam vendas milionárias, resultados líquidos positivos, comentam percentagens de passes, falam de direitos económicos e injecção de capital como se fossem golaços, dribles incríveis, momentos para a eternidade.
Mas permitem tudo isso só ao «primeiro clube».
Sou eu que digo? Não, são os números de outro estudo. Este coloca, por exemplo, a II Liga portuguesa no penúltimo lugar na média de audiências dos campeonatos europeus. Menos de mil pessoas por jogo. Qual é o lado curioso? É que essa média não é muito diferentes de alguns clubes da Liga nem de alguns clubes de escalões mais abaixo. Qual é o dado perigoso? É que esses são os clubes onde o dinheiro que entra dos adeptos ainda faz bastante falta.
O que faz, então, com que um clube do terceiro escalão português possa ter assistências que rivalizem com alguns do primeiro? O espírito. Enquanto nas Ligas profissionais se tenta ser grande em ponto pequeno, nos outros escalões há muitos clubes pequenos, com alma gigante. Históricos como o Sp. Espinho, o Farense, o Fafe, o Torreense e tantos outros.
Se a maior parte do adepto português tem coração para dois clubes, também me parece óbvio que quer que sejam diferentes. Se ao dominador aceita quase tudo, mesmo que este já só precise dele, praticamente, para decorar o estádio, para o «segundo clube» tem duas opções: ou vai ao estrangeiro, impulsionado pela globalização, sobretudo se tiver nascido perto ou para lá do ano 2000 ou então é alguém sedento e que quer beber o espírito da bola. Da conversa, da família, da bifana, da cerveja, da frustração descarregada no senhor do apito. Porque isso, claro, não muda seja qual for o campo. Ou o país. Conhecem o United of Manchester, por exemplo?
Numa altura em que os pequenos querem ser grandes nos trejeitos e nos modos, não espanta que as pessoas fujam, então, para lugares ainda mais modestos e alguns clubes do terceiro escalão e mais abaixo ombreiem na bilheteira com os menos fortes da Liga e II Liga. Porquê? Sentem-se importantes, integrados, membros da família. Convivem com os craques, falam deles como irmãos, sentem-se em casa no estádio.
A bola está do lado dos outros. Se, por um lado, segreda-se ao ouvido do adepto que ele é significa tudo, por outro arranja-se de tudo para o afastar cada vez mais. Já nem o dinheiro é assim tão importante, porque há outras torneiras bem mais fluídas.
Um clube de futebol sem adeptos parece ridículo mas é cada vez mais possível. Contudo, é como o descafeinado: parece café, sabe a café, mas não me venham dizer que é café."
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