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terça-feira, 9 de junho de 2020

Águias e leões na terra dos arcebispos

"Benfica 3 - 2 Sporting: fez há pouco 70 anos que o dérbi se jogou no recém-inaugurado Estádio 28 de Maio que viria a transformar-se em 1.ª de Maio. Vitória justa e rija por entre os festejos que se prolongaram pela madrugada


Para mim, é um dia manhoso. O 28 de Maio, quero dizer. Questão de gostos, claro. E eu gosto de viver e de caminhar pelo lado esquerdo da vida. Eu gosto da liberdade, da minha e da dos outros, e não aceito a prepotência e a tirania. Ou seja, estou no meu posto!
No dia 28 de Maio de 1950, Braga viu o seu estádio inaugurado. O Estádio 28 de Maio, que depois passou a chamar-se 1.º de Maio. Depois do advento da liberdade, como está bem de ver.

O regime de António Salazar promoveu uma festa de arromba. Salazar não gostava de futebol, mas sempre se aproveitou dele para manter o povo calado, acarneirado. Houve o habitual desfile da Mocidade Portuguesa: 800 membros. Houve parada oficial dos representantes dos clubes, apresentando respeitosos cumprimentos ao presidente do Conselho e ao presidente da República.
Salazar discursou longamente. Muito longamente. Disse do comunismo o que Mafoma não diria do toicinho, e foi, a pouco e pouco, provocando sonolência naqueles que queriam actos, e não palavras.
D. António Martins Júnior, que tinha sido anfitrião de um belíssimo repasto na Sé, cabeceava a torto e a direito, fazendo um esforço para erguer as pálpebras pesadas. António Santos da Cunha, presidente da Câmara Municipal de Braga, já tinha tomado a palavra para balbuciar, nitidamente comovido: 'É de gratidão a palavra que me ocorre. Gratidão pela paz interna que nos destes e assegura a continuidade e eficiência do nosso labutar diário; gratidão pela tranquilidade de espírito que nos vem da confiança na vossa direcção segura e firme; gratidão pela liberdade, sim, pela liberdade, que enfim viemos a desfrutar após 16 anos de tirania dos partidos, a que hoje vemos negada aos malfeitores e aos traidores conscientes e inconscientes'.
Agradecer liberdade a Salazar tem que se diga, homessa! Só por isso valeu o panegírico do chefe do município que se engalanara como jamais até aí.

A bola rolou...
Houve dois jogos de futebol, consecutivos, duas refregas de enorme entusiasmo. Primeiro um SC Braga - FC Porto. Depois o dérbi dos dérbis: Benfica - Sporting.
O Benfica venceu bem.
Dizia uma crónica da época, do magnífico Tavares da Silva. 'É possível que os leões, na primeira parte, tivessem desfrutado de maior domínio territorial do que os encarnados. Mas o Benfica realizou brilhante exibição - das melhores com que nos tem brindado'.
O Sporting estreava um jogador vindo de Macau: coisa rara - Joaquim Pacheco. Não tardaria a chegar também o enorme Rocha, figura basilar de uma Académica única.
A cada três golpes, o Benfica ficava, subitamente, à beira do golo.
A cada três golpes, a defesa leonina tremia como varas verdes.
Toda a filosofia dos encarnados se baseava num princípio fundamental: objectividade. A baliza estava ali, a chamá-los, era esse o caminho a seguir. 'Se é certo que os campeões nacionais estiveram bem na defesa cerrando fileiras, impedindo as progressões de Travassos e Albano pela esquerda, a grande organização do ataque é que foi particularmente brilhante', prosseguia o plumitivo.
Rogério era o motor dessa organização. Foi graças a movimentações suas que o Benfica chegou ao 2-0. 'Rogério pode sem favor, considerar-se o melhor elemento da equipa encarnada. Talvez a sua melhor exibição da época. Mas, inegavelmente, a linha avançada esteve toda muito bem. José da Costa razoável ao lado de Moreira. Félix bastante bem. Jacinto e Fernandes regulares'.
O Benfica venceu por 3-2 e levou para casa um magnífico troféu.
A equipa parecia pronta para atacar a Taça Latina, que iria começar pouco tempo depois, com uma vitória dos encarnados que entrou no espírito das lendas.
Pelas ruas de Braga, festejou-se todo o dia e pela noite dentro. Um estádio arejado, aberto, moderno, prometia grandes espectáculos. Como aquele só havia outro em Portugal, o Estádio Nacional, feito ao mesmo estilo germanizado do arquitecto Albert Speer. E 40 mil pessoas arrostaram o sol da tarde desse 28 de Maio. Era tempo de regressarem a casa e irem encontrando, pelo caminho, o chão juncado dos restos das paradas. Sobra sempre uma espécie de vazio dentro de nós no momento em que acabam as festas..."

Afonso de Melo, in O Benfica

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