"Porque a bola que Eder recebeu, protegeu, aguentou com três toques e rematou, desengonçado pela fé do pontapé, nos fará ter saudades para sempre do tal dia – o dia em que pudemos dizer que somos os melhores.
- Almoçamos?
A manhã já vai longa e leio esta mensagem no telemóvel. Acabo de acordar. Estou de rastos, são trinta e tal dias seguidos a trabalhar, a ir para a cama cansado, a sair dela na mesma, a dormir poucas horas, a comer a más horas e a engolir quilómetros todos os dias. E digo-o ao Duarte.
Não são desculpas, são desabafos a um amigo de faculdade, que vive e trabalha fora há anos e que está em Paris no dia em que Paris pode significar tudo e mais alguma coisa para nós. Já estou nervoso quando lhe escrevo que sim e acertamos as agulhas do sítio para reunir.
Fica a 30 minutos debaixo de terra, mais ou menos. Faltam umas seis horas para o jogo e fico nervoso quando entro no metro. Há gente mascarada, já de cara pintada, a falar alto, pessoas que se multiplicam à medida que sobram menos estações até ao destino. Ouço barulho em português em vez de uma ou outra frase aportuguesada no sotaque, palavras enferrujadas pela vida de emigrante, como nas últimas semanas.
Saio perto da Torre Eiffel e a coisa intensifica-se.
Encontro o restaurante e o Duarte está com o Miguel, outro emigrado, mais um da universidade. Estão com um alemão e ele, acho, acalma-nos. É a pessoa de fora, estrangeira, e a conversa que acompanha o hambúrguer e as batatas e a Coca-Cola é para lhe explicar o que significa sermos portugueses. Sê-lo em França, durante um Europeu, estarmos ali, em Paris, para uma final contra os franceses. Falamos dos emigrantes e das gentes brandas e humildes, das profissões que arranjaram e das porteiras, das invasões francesas e da história, do futebol e do que ele nos fez perder para os franceses.
Obriga-nos a contextualizar, faz-nos perceber o quão pequenos - e sortudos - somos dentro do gigante quadro que se está ali a pintar.
- Vemo-nos quando formos campeões europeus.
Lembro-me de ouvir, quando nos despedimos, mas esqueço-me da boca que o disse.
Mais nervoso fico. O metro e o comboio que apanho para chegar ao Stade de France parecem demorar uma eternidade. Não há pressa, faltam horas, mas só quero entrar no estádio, chegar ao meu lugar de jornalista, sentar-me e absorver tudo o que se está a passar. E pensar em como vou conseguir escrever o que seja.
O estádio parece o alvo de uma invasão. Uma multidão de gente circunda-o e está diferente dos outros dias de jogo. É a terceira vez que ali estou e os acessos estão mudados. Há mais controlo, mais barreiras policiais, mais fronteiras para cruzar. Dou três voltas ao recinto porque dois voluntários diferentes me indicam acessos pelos quais não me deixam passar. Fico fulo e a ferver na pouca água que a ocasião me dá e ainda mais nervoso estou quando me sento na bancada.
Faltam três horas.
Os jornalistas vão chegando, os companheiros de uma estrada que percorremos há mais de um mês. Os apertos de mão, as posturas ansiosas, a incredulidade nos olhares dos que são portugueses e têm de trabalhar no dia que é obrigatório desfrutar. É a definição de conversa de circunstância - falamos sobre a selecção, os empates, os golos que não sofremos, o Fernando Santos, a sorte de ali estarmos.
Conversamos sobre a circunstância em que estamos metidos, na final de um Europeu que pode ser ganha por Portugal.
E estamos no meio de uma praga de traças gigantes.
O aquecimento, a cerimónia de abertura, a canção oficial do torneio. Por esta altura já soa e significa tanto como o hino nacional, por mais que vá contra tudo o que acredito que a música deve ser. Mas até o que é mau e banal se entranha quando é tantas vezes repetido ao longo de um tempo que acaba por ser dos melhores que já nos aconteceram na vida. Essa canção, que o meu gosto continua a ter como má, banal e estridente e básica, ainda hoje me dá pele de galinha quando a ouço.
Arrepia-me, como arrepiado fico ao pensar noutros momentos da final. Do Manuel Casaca, jornalista d’O Jogo que me goleia em idade, experiência e andança nesta vida e que ao meu lado ficou pela terceira ou quarta vez no Europeu.
- Ó, tu outra vez, Diogo? Assim já fico mais descansado, vamos ganhar.
Vi adultos feitos a chorarem, emocionados, quando o Ronaldo se emocionou e, sentado no relvado, empurrado pela tristeza da lesão, deitou lágrimas. Nem a Mariana Cabral (espero que me perdoe) se conteve. Os nervos que senti durante quase duas horas, como se a vida dos meus pais estivesse em jogo. Os dois ou três miúdos, voluntários da UEFA, que durante a final diziam, em francês, atrás de nós, que Portugal jogava pouco e merecia ainda menos estar ali. Os berros, os abraços, e os saltos, a festa que nos engoliu por um minuto quando, de todas as pessoas, foi o Eder a ir buscar-nos ao poço dos coitadinhos que nada ganhavam e se queixavam das vezes em que estiveram perto de o fazer.
O golo entrou com 11 minutos em falta para se jogar. Estava a trabalhar, mas fechei o portátil. As mãos tremiam, estava nervoso, parecia ter na cabeça um medo que se agarrava ao volante e conduzia aos ziguezagues.
Não conseguia estar sentado.
O jogo acaba e somos campeões europeus. Melhores que todos e piores que ninguém, a olhar de cima e não mais para cima. Mais gritos e saltos. Abraço jornalistas com Europeus e Mundiais no passaporte, décadas de trabalho e de experiências falhadas, que choram. Choro com eles. Acho que todos sabemos que, muito dificilmente, tudo o que o universo alinhou se voltará a alinhar na direcção de uma selecção portuguesa. Isolo-me durante uns minutos, porque ainda tremo e tenho de conter as lágrimas e há palavras que têm de ser escritas.
Entrego-as, são publicadas e fico quase duas horas no mesmo sítio. Não quero sair dali, do estádio onde, lá em baixo, vejo os jogadores com os pais, as mulheres, as namoradas, os filhos e os amigos. Tiram fotos, beijam o caneco, também não querem ir embora. O Marco Oliva, da Lusa, vai à conferência da imprensa, volta, ri-se por me encontrar no mesmo sítio. É proibido, mas fumamos um cigarro, que se lixe. Conversamos sobre a sorte que temos e o momento pede-o - o estádio está praticamente vazio, só estão umas dezenas de pessoas à vista, há um daqueles silêncios impagáveis.
- Pouco importa, pouco importa, se jogámos bem ou mal, vamos levar a taça para o nosso Portugal!, cantariam os jogadores, quando passaram na zona mista, sem pararem.
Já deve passar da uma da manhã. Vamos embora, é tarde, procurar um sítio que cozinhe e sirva comida a vários esfomeados e felizes jornalistas portugueses. Nas catacumbas do estádio, alguém repara que um dos túneis para o relvado está aberto e não vigiado. Arriscamos, ninguém nos interrompe e, de repente, estamos a passear no relvado. Exultamos, rimos, tiramos fotografias e até bolas encontramos para dar uns toques e rematar à baliza para a qual o Eder não olhou, mas acertou.
Ficámos quase uma hora até dois seguranças, altos, pesados, corpulentos, franceses, surgirem com má cara perante os nossos risos e sorrisos. Expulsam-nos. Vamos à garagem e ao carro do Bruno e do Rui, do Diário de Notícias, que levam a Mariana, o Diogo e o Rui Miguel para o restaurante, descoberto não sei como, que nos serve um bife tártaro às três da manhã. Podiam ser ovos mexidos com arroz, esta refeição iria sempre merecer um prémio gastronómico.
A sorte que temos em estar aqui, às três da manhã, a comer, despreocupados e aliviados, no fim de uma aventura que deu um Campeonato da Europa a Portugal. E podermos dizer que estávamos lá.
No dia em que o Eder nos lixou a todos. O pontapé dele foi a felicidade de qualquer português que gosta de futebol e de muitos que até nem costumam querer saber. Foi o tipo de alegria que, ao senti-la, estamos já um pouco melancólicos e com um pitada de saudade, porque, no fundo, sabemos que o mais provável é não vivermos algo remotamente parecido enquanto formos vivos.
É por isso que, nesse dia, durmo duas horas, se tanto. Não quero fechar a cortina e passar ao dia seguinte. Não, este tem de - e vai - durar para sempre."
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