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sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Os detalhes que se treinam, cada vez mais

"No final da época passada, o Liverpool contratou um treinador especificamente para os lançamentos laterais e, há mais de 10 anos, um banqueiro em Itália chegou ao futebol por ser um especialista, quase obsessivo, a planear esquemas para as bolas paradas. Mesmo que ainda vá sendo motivo de desconfiança, o futebol já se especializou, e vai inovando, nas pequenas coisas

Então eu quero ser treinador do primeiro pontapé de saída.”
Andy Gray é um comentador de televisão na BeIn Sports, versor de palpites e de opiniões sobre futebol, moralizado para falar pois, algures entre os anos 70 e 90, ter feito carreira como um avançado escocês, marcador de golos pela sua selecção e em várias equipas inglesas. Agora um sexagenário, quis troçar um assunto dizendo, sarcasticamente, que a sua vontade era especializar-se no momento em que arranca uma partida de futebol.
Foi uma tentativa de piada. Não seria descabido, contudo, que o antigo jogador, ou alguém, se dedicasse a inventar formas de tirar partido de uma situação onde a raríssima excepção é ver uma equipa ter um movimento específico, e treinado, para dali atacar a baliza adversário - em vez da norma, que é o vulgar passe para trás e o banal chuto para à frente, na esperança que alguém desvie a bola, com a cabeça.
Basta ver o vídeo em cima, que é uma breve colecção de golos feitos a partir de pontapés de baliza, para constatar algumas coisas: 1) tirando roubos de bola na pressão, e maus passes que resulta em perdas de bola do adversário, quase todos os exemplos vêm de jogadas feitas pela relva ou remates diretos à baliza, da linha do meio campo; 2) a única excepção é uma bola longa, sim, mas não um pontapé na direcção do jogador mais alto, antes um passe para as costas da defesa.
O momento em que uma partida se inicia não é uma tarefa mais fácil, ou complicada, para uma equipa atacar e marcar um golo. No limite, até pode ser mais acessível, dado que a falta de pressão quase oferece o primeiro passe que se queira fazer. A questão talvez esteja na falta de atenção, trabalho e treino dedicada a essa situação de jogo - pelo menos, que se conheça.
Andy Gray, aparentemente, não saberá de exemplos práticos, porque a sua sugestão surgiu quando falou com desdém da notícia de que o Liverpool contratara um tipo dinamarquês para ajudar o clube a lidar com outros momentos, igualmente bastante específicos.
A função de Thomas Grønnemark é treinar os breves segundos em que um jogador pode usar as mãos para devolver a bola ao campo. Uma brevidade cujas repetições se multiplicam, sempre, durante um jogo, e nas quais o dinamarquês há muito repara. “Em média, há entre 40 ou 50 lançamentos laterais por jogo. Isso dá cerca de 12 minutos por encontro ocupados por lançamentos e situações originadas por eles”, explicou, ao site “Training Ground”.
Thomas cresceu a ser atleta de desportos de inverno, competindo pela Dinamarca no bobsleigh (trenó). Sempre se intrigou como “demasiados” os lançamentos laterais “a bola era perdida ou oportunidades de golo não eram criadas” porque “nenhum jogador sabia lançar a bola longe, ou precisa, o suficiente”, resume, na sua biografia oficial.
Ao reparar, também, que não existiam vídeos ou estudos publicados sobre este tipo de treino, tomou a iniciativa. Inventou formas de trabalhar os lançamentos, falou com clubes e, com o tempo, colaborou com o Horsens e o Midtjylland, clubes do seu país. O segundo foi campeão dinamarquês a época passada e marcou 10 golos no campeonato a partir de lançamentos laterais, com Grønnemark na equipa técnica.
Não podendo falar sobre o que seja relacionado com o Liverpool, ele pegou no exemplo de Andreas Poulsen, lateral com quem trabalhou Midtjylland, e que agora está no Borussia Mönchegladbach, da Alemanha, para ilustrar o impacto que o seu trabalho pode ter. A distância máxima dos lançamentos de Poulsen passou de 24,2 metros para 37,9 - o que dá azo a contas: “Se desenhares um meio círculo a partir da linha lateral, o alcance dele foi dos 923 para os 2.256 metros quadrados, que é mais do que o dobro”.
Se o Liverpool, proprietário do luxo de ter na equipa três atacantes em Firmino, Mané e Salah, em quem a velocidade e explosão são virtudes, puder ter laterais com tal alcance nos lançamentos laterais, então será capaz de aproveitar esses momentos para mais do que atirar a bola ao jogador mais próximo, para que ele a devolva ao remetente.
Porque o lançamento lateral, fora o pontapé de baliza, é o único momento em que não existe fora de jogo (em qualquer parte do campo) e “o adversário pode não estar organização, portanto é possível explorar o seu desequilíbrio”, explicou Thomas Grønnemark. “Se os apanha-bolas te derem a bola rápido, podes fazer um lançamento forte, preciso e profundo para o espaço nas costas da defesa”, acrescentou, ainda.
Mal o conheceu, Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, admitiu que “quis logo” contratar o dinamarquês, que por sua vez é dono do recorde do Guiness para o lançamento lateral mais longo: 51,33 metros, praticamente a largura de um campo de futebol.
Mais comum do que treinar lançamentos laterais, é trabalhar livres ou pontapés de canto. Os estereotipados lances de bola parada, ou de ‘laboratório’, como o cliché os trata. Gianni Vio, um italiano já de meio século vivido, farta-se de pensar neles. Deixava a mente vaguear entre esquemas e movimentações, que desenhava com uma caneta em folha de papel, de forma incessante.
Só que ele vivia em Veneza, era banqueiro de profissão e desviava as atenções das tarefas laborais, de tal maneira, que escreveu um livro, acompanhado de um CD-Rom de exemplos práticos, que publicou na internet, para mundo ver. Algures Walter Zenga o viu e o ex-guarda-redes italiano, então treinador do Estrela Vermelha de Belgrado, em 2005, quis descobrir quem era Gianni Vio, contou a “Eurosport”.
Conversaram por e-mail, trocaram esquemas e discutiam ideias, que tanto interessaram ao treinador que, em 2008, já no Catania, convenceu o presidente a contratar o italiano a quem o tempo forjaria a reputação de guru das bolas paradas. “Ele não é só um feiticeiro dos livres, é como ter um avançado que marca 15 ou 20 golos por época e nunca se lesiona. Consegue pôr jogadores que, normalmente, não marcariam golos, a marcarem”, chegou a argumentar Zenga.
Gianni Vio, que apenas trabalha bolas paradas atacantes, trabalharia, depois, na Fiorentina, no AC Milan, no Brentford e, na época passada, no Leeds United. O italiano está longe de ser a única pessoa no futebol a especializar-se em rotinas de livres ou pontapés de canto, mas um dos mais vanguardistas será no arrojo, criatividade e engenho com que inventa, sobretudo, distracções para quem defende.
Coisas como formar uma segunda barreira de jogadores atrás, ou à frente, da adversária, ter um jogador a baixar os calções na linha de visão do guarda-redes, e improvisar na forma como os futebolistas se desmarcam. “Noventa por cento é psicológico”, afirmou, em 2012, o fabricador de jogadas a partir de bolas paradas - “Há um número infinito de rotinas, pode haver 4.820 só para pontapés de canto. Como podes planear defendê-las? Nunca repetimos uma, tentamos sempre variar e ter como base a imprevisibilidade”.
Ter alguém específico, e especializado, para treinar os lançamentos laterais ou as bolas paradas não é tanto um luxo para os clubes. Será mais um imbróglio devido ao tempo - e à falta dele. “Tanto há semanas em que fazemos duas ou três sessões por semana, como há semanas com nenhuma”, confessou Thomas Grønnemark.
Entre dias de descanso pós-jogo, treinos de recuperação, sessões dedicadas às transições defensiva ou ofensiva, ou movimentação atacante, nem sempre sobram horas no relvado para ter a atenção dos jogadores dedicada a este tipo de detalhes.
Outra possibilidade é filtrar a inovação para outras áreas, não tão consumíveis de minutos em campo. Ralf Rangnick, o director desportivo do RB Leipzig virado treinador do clube, pela terceira vez, chegou à conclusão que multar os jogadores por chegarem atrasados ao treino não estava a dar grande resultado. Portanto, decidiu inovar.
O castigo para este tipo de malfeitorias passou a ser determinada por uma roda do azar, na qual constam hipóteses como cumprir um turno na loja oficial do clube, cortar a relva, servir de guia em visitas às instalações do clube ou comprar presentes para oferecer aos funcionários do RB Leipzig. Todos os detalhes contam e podem ser 'treinados', inovando."

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