"O Benfica ganhou um jogo. Em tempos de coronavírus, isto é notícia. Um jogo. Para dizer a verdade, já nem me lembrava da última vitória. Deve ter sido contemporânea dos Cinco Violinos ou do Marquês de Pombal. Ah, já sei. Foi aquela vitória em Vila do Conde, contra uma equipa de futsal. E mesmo a jogar contra nove, não foi fácil. Com a saída de Bruno Lage e a entrada de Veríssimo (o treinador, não o árbitro) a equipa saiu do coma e ao intervalo ganhava por 3-0.
Os jogadores fizeram a cama a Lage? Talvez. A verdade é que nos últimos jogos andaram a dormir na forma. Se fizeram a cama ao treinador ou se foram misteriosamente picados pela mosca tsé-tsé, nunca se saberá. Uma coisa é certa, Seferovic, esse, parece às vezes que quer fazer a cama a todos os treinadores e, de caminho, deitar-se nela, tal a quantidade de oportunidades que desperdiça. O suíço é um dos grandes desperdiçadores da história do Benfica. Merece uma estátua. Estátua essa que, daqui a gerações, será exemplarmente decapitada e atirada ao Tejo.
Confesso que não vi o jogo. Nem sequer vi o resumo alargado. E esta é a censura que faço aos jogadores do Benfica. Nos últimos tempos, antes da pandemia, conseguia ver os jogos do Benfica do princípio ao fim. Nem sempre tinha sido assim. As vitórias, os vários campeonatos conquistados, acalmaram-me. Antes disso, cada jogo era um tormento, um funambulista no arame e o meu coração não aguentava. Mudava para um canal de filmes, para um documentário, para uma telenovela. Qualquer coisa, desde que não fosse o jogo. Mas os meus vizinhos benfiquistas gritavam (e ainda gritam) a cada golo e eu ficava impaciente. Será que teríamos sofrido outro nos entretantos?
(Já agora, que som é que os adeptos fazem quando o clube sofre um golo? Os meus vizinhos atiram patadas no chão, mas também o fazem quando há uma jogada de perigo do Benfica que acaba com o Seferovic a chutar ao lado. Acuso, pois, o suíço de ser o responsável pelo estado do meu tecto. A cada patada dos meus vizinhos no soalho, a casa toda treme e não estranharia se, num destes dias, um dos meus vizinhos (são muitos) viesse por aí abaixo numa avalanche de amendoins, cerveja e estuque, aterrando com estrondo na minha mesa de jantar.)
Terminado o jogo, conhecedor do resultado, abria a minha cerveja, puxava o filme atrás e lá via a partida com uma serenidade budista. Este ano voltei a conseguir ver jogos em directo, mesmo os clássicos e os das competições europeias, do princípio ao fim. E agora que o meu problema estava resolvido, o Benfica trocou-me as voltas e fez nascer em mim o desejo de nunca mais ver um jogo. Antes não conseguia ver por causa dos nervos, agora não consigo ver por causa de um misto de tédio e vergonha (imaginem um sentimento unívoco de vergonha alheia e vergonha própria e estarão perto do que sinto).
Felizmente ainda há coisas que me fazem rir. No final do jogo, adeptos rivais correram para as redes para denunciar o guarda-redes do Boavista, Helton Leite, que, de acordo com a imprensa, estará a caminho do Benfica. Dizem estes adeptos que o guarda-redes ofereceu a vitória ao (hipotético) futuro clube. Fernando Madureira, guardião da ética desportiva, contribuiu com uma reflexão pertinente: “Continuam sem prender ninguém? Helton Leite, assinaste antes do jogo?”, perguntou retoricamente o mestre em Gestão do Desporto pelo Instituto Universitário da Maia (ou ISMAI, e aproveito para sugerir slogan “ISMAI – quem entra, já não sai”)
E se isto me faz rir é porque, a ser verdade, demonstraria uma bizarra competência da direcção do Benfica. Incapaz de motivar os jogadores a quem pagou os ordenados por completo neste período de vacas magras, seria capaz de convencer um jogador adversário a facilitar e oferecer de bandeja uma vitória que, ainda por cima, nesta altura, de pouco ou nada adianta na luta pelo título. (Escrevi isto e já me arrependi porque haverá alguém neste momento convencido de que a “ajuda” de Helton foi só para garantir o lugar de acesso à Liga dos Campeões. Porque é que me meto nestas coisas?)
Bem, como uma vitória é sempre uma vitória, ainda para mais neste tempo em que têm sido tão raras, talvez dê o benefício da dúvida aos jogadores e ao técnico interino e veja o próximo jogo contra o Famalicão. Pelo menos as bancadas, como a natureza para os cultores do romantismo, reflectirão com fidelidade o meu estado de espírito e nada do que aconteça em campo alterará a minha disposição fundamental: nem uma vitória por 5-0 me convencerá de que Nelson Veríssimo é o novo Mourinho, o nosso Ferguson, uma versão actualizada do obsolescente Lage, nem uma derrota por margem idêntica me atirará para profundezas emocionais maiores do que aquelas em que me encontro. Será apenas mais um passeio circular pelo purgatório em que se tornou este fim de época, sem caldeirões infernais e sem anjinhos de harpa, sem esperança e sem desespero."
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