"Era quinta-feira, já de noite, o telemóvel acende o ecrã, é uma notificação das milhentas que implica ter o WhatsApp instalado e lá fazer parte de grupos. Cai uma mensagem: "Estes gajos precisam de ser apertados".
O grupo é de bons e antigos amigos, muitos vindos da ancestral infância quando nem sabíamos o que era futebol. Quem a escreve é um benfiquista chateado com o empate do Benfica com o Tondela, apoiado minutos depois por outro que tenho como amigo para a vida, que apenas escreveu "mesmo". Nenhum sabia, ou sequer imaginava, que nessa noite o autocarro do clube seria apedrejado e as casas de vários jogadores pintadas com insultos em muros e paredes.
Não era preciso o primeiro escrever, no dia seguinte, que obviamente não se estava a referir a disto, porque eu e ele conhecemo-nos há muito e entre as razões para sermos amigos é, felizmente, sabermos que a violência, o vandalismo e as ameaças resolvem nada, são resposta para muito menos e vêm de gente que não sabe viver em sociedade, portanto, também não saberão conviver com vitórias e derrotas da equipa que apoiam no futebol, que alteram nada de palpável nas nossas vidas, fora oscilações na bússola do humor e da boa disposição.
Já era sábado e sobre isto falámos como deve ser, em pessoa. Chegámos rapidamente ao subliminar problema que origina barbáries destas quando este meu amigo começou a dizer coisas como "Mas eles não sentem uma vitória ou uma derrota como nós", "Mas eles estão-se nas tintas", "Mas eles ganham milhões, só pensam nisso, têm que aguentar" ou "Mas eles têm que sentir a exigência". Sempre um "mas".
Concordo com a última, pois se os humanos ergueram estádios à volta de campos foi para terem lá adeptos que querem o mesmo que o clube, obterem o dinheiro que pagam pelos bilhetes e irem tendo o que despendem nas quotas de sócios, retribuindo com um clube que reflicta os valores da região, da terra, da cidade e das pessoas que o acolhem.
Mas condeno e rejeito todas as outras, em que o "eles", como já devem ter percebido, são os futebolistas, entre os quais haverá cerca de nenhum que se sinta mais motivado e em pulgas para jogar melhor depois de ser ameaçado com violência ou ter a casa onde moram os filhos vandalizada porque perdeu, ou empatou um jogo, e alguém achou que isso era razão para ser apertado.
Isto não é apertar.
Apertar é fazer o que é tolerável por estar no direito de cada adepto que torça, sofra e tem os batimentos cardíacos dependentes das coordenadas da bola no campo: exigir melhores resultados e exibições, criticar, assobiar, apupar ou mostrar tarjas no estádio, por exemplo. São coisas de que os jogadores também não gostarão, com as quais podemos concordar ou discordar, mas que se aceitam, cabem na chapelada que conhecemos como pressão e, tacitamente, um futebolista abraça quando encarrila a vida por este caminho.
De nenhum plano faz parte haver adeptos a apedrejar autocarros e vandalizar casas de jogadores, a invadirem um centro de treinos para baterem em jogadores ou a ameaçarem um jogador com um tiro no joelho se não renovar o contrato com o clube.
A paixão das pessoas é o que germinou os clubes. Até certo ponto, é o que os faz mover antes de entrar a mecânica dos €, mas essa paixão acaba onde começa a visão doentia que distorce o conceito de apertar uma pessoa cuja profissão é jogar futebol e, na grande maioria dos casos, importa-se tanto quanto qualquer adepto se o jogo não lhe dá aquilo pelo qual passou dias e dias a treinar para acontecer.
Não sei se há assim tanto jeito no argumento, mas, quando respondi ao meu amigo que já o vi, não sei quantas vezes, furibundo e a barafustar por perder um jogo da bola entre amigos, indo para casa de trombas quando nada está em discussão e nem há pessoas a torcerem pela equipa em que jogou, e lhe pedi para imaginar o que sente um profissional, ele calou-se. "Mas é diferente", disse, às tantas.
Pois é, claro que é.
É a curta vida profissional de pessoas cujo trabalho diário é prepararem-se para aquela hora e meia que têm a cada semana, em que têm de carregar as suas próprias expectativas e jogarem pelas de todos os adeptos para quem esses 90 minutos podem bem ser o escape de uma semana de tudo o que lhes ocupa a vida e, naturalmente, se desiludem quando as coisas não correm bem. Mas nada, em circunstância alguma, justifica ter a "casa vandalizada, cabeças partidas, vidros nos olhos ou ser alvo constante de ameaças", como escreveu Fábio Martins, quando se atreveu a conversar sobre isto, sem filtro, numa rede social onde o teclado e o anonimato protegem ódios exacerbados, mas se deu ao trabalho de confrontar e ser confrontado por quem acha que "Eles Ganham Milhares, Têm Que Se Sujeitar".
Fábio Martins deu um exemplo de abertura, transparência e diálogo, mais uma vez e muito bem, entre quem faz vida do jogar futebol e quem vive para ter o futebol como um dos seus gostos e hobbies. Foi lendo muitos "mas" e dando resposta a vários. Mas, repetindo, o "mas" que mais devia importar é este: o futebol pode significar tudo para muita gente, mas nada justifica apertar com violência quem anda no futebol. Nunca. Devemos é apertar com a mentalidade que leva alguém a achar-se no direito de ameaçar e violentar jogadores só porque não ficou contente com o que os viu a fazer em campo."
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