"[Esta crónica é para ser lida à velocidade de um locutor de rádio ou, se preferirem, da mesma forma como terminam os anúncios publicitários de medicamentos. Em caso de persistência dos sintomas consulte o seu médico ou farmacêutico]
O árbitro não pára de olhar para o relógio, ele deu quatro minutos de descontos e já estão cumpridos dois. É pontapé de baliza para Toldo, que bate curto para Maldini. É a final do Mundial, senhoras e senhores, e a Itália tem a posse de bola nos últimos instantes do jogo, que permanece empatado a uma bola, depois dos golos de Del Piero para a squadra azzurra, e de Batistuta para a Argentina. Marcelo Bielsa está hiperactivo na linha lateral, Dino Zoff permanece sossegado no banco de suplentes, tranquilo como quando defendia as redes da selecção que agora orienta.
A bola está em Nesta, que olha para o lado e vê Iuliano, e é lá que coloca a bola. Iuliano não tem opções imediatas de passe e decide bater longo, para a zona de Montella, que divide a bola com Pochettino. A bola sobra para Francesco Totti, que domina a bola como só ele sabe, que forma carinhosa e delicada de tratar o esférico. Totti olha para a baliza, tem os caminhos tapados, devolve a Montella que passa ainda mais para trás para Di Biagio, o homem improvável deste torneio, onde temos visto uma Itália que sabe atacar tão bem como defende. Di Biagio não está pressionado, tem tempo para decidir, vê Del Piero a desmarcar-se pela esquerda, tenta um passe rasgado para o autor do golo italiano mas aparece Zanetti, que grande corte, imperial Javier Zanetti. E a bola fica na posse da Argentina.
Olho para o relógio e acredito que possa ser o último ataque do jogo, os hinchas argentinos presentes em Wembley também pressentem o mesmo e é de forma ruidosa que tentam empurrar a selecção das pampas para a baliza de Toldo. Walter Samuel procura Simeone, que recebe a bola e levanta a cabeça e dá em Pablito Aimar, farol desta selecção na segunda parte da final do campeonato do mundo. Aimar contemporiza, dá dois toques na bola, está pressionado por Ambrosini mas com uma finta de corpo livra-se do italiano e o estádio vem abaixo, vai Pablito, vai Aimar, tem Diego Placente na esquerda e é para lá que vai a bola. Placente recebe, olha para área, vai cruzar, hesita, devolve a Aimar, pois claro, o 16 argentino recebe com o pé esquerdo, domina agora com o direito, está de cabeça levantada, pisa a bola Aimar, decide entrar na área com ela controlada, Aimar, o pequeno génio deste início de milénio, Aimar, sempre Aimar, deixa Cannavaro para trás, génio, génio, ta-ta-ta-ta…
Bip bip, bip bip. São sete horas em Portugal continental e na Madeira, menos uma nos Açores. Mais uma vez, o despertador impede-me de terminar o meu sonho, ficando novamente sem saber quem ganha a final entre a Itália de 2000 e a Argentina de 2002. Tenho que esperar pela próxima noite, pelo próximo sonho, pelo próximo duelo entre equipas que não atingiram a glória mas que, por um qualquer motivo mais ou menos óbvio, conquistaram um lugar no nosso coração e no nosso subconsciente. Não nos saem da cabeça, não conseguimos esquecê-las. Estamos continuamente a imaginar o que poderia ter acontecido se aquela bola não tivesse ido ao poste, se o defesa não tem escorregado, se, se, se. Sim, quem conquista a glória merece muitos capítulos de almanaques. Mas eu cresci a ouvir dizer que o Brasil de 82 é que era. E foi, de facto, uma equipa que deixou milhões e milhões a sonhar. Cada um de nós tem os seus perdedores preferidos. Lá porque não saíram a sorrir no final da história, não quer dizer que nós não possamos fazer com eles o que quisermos. Isso e ter sempre Victor Hugo Morales a entrar-nos sono dentro."
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