"Em 1967 Guy Debord publicou “A Sociedade do Espectáculo“, uma análise mais económica, filosófia e histórica do que cultural. Uma obra em que o autor declara que “o espectáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta na sua plenitude a essência de qualquer sistema ideológico: o empobrecimento, a submissão e a negação da vida real. O espectáculo é, materialmente, «a expressão da separação e do afastamento entre o homem e o homem».” (Debord, G., 1997, “A Sociedade do Espectáculo”, Rio de Janeiro, Contraponto). Nitidamente uma obra em que o espectáculo é dissecado numa óptica das relações de produção e não centrada no espectador. Numa das poucas vezes em que Debord se preocupa com o espectador afirma que “a alienação do espectador em proveito do objecto contemplado (que é o resultado da sua própria actividade inconsciente) exprime-se assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo.”
Mario Vargas Llosa publicou em 2012 “A Civilização do Espectáculo” mais preocupado com a cultura do nosso tempo. Uma cultura que, no sentido tradicional conferido ao vocábulo, talvez já tenha desaparecido (a confusão total provocada pelo capitalismo entre preço e valor, em que este último sai sempre prejudicado, conduz à degradação da cultura e do espírito que é a civilização do espectáculo). Llosa chega mesmo a afirmar que “a ideia de progresso é enganosa”…
São mais os pontos que separam estes dois livros do que aqueles que possuem em comum. Mas complementam-se. No entanto, enquanto no primeiro se pode constatar que o consumidor real se torna um consumidor de ilusões, no segundo afirma-se que “nos nossos dias, os grandes jogos de futebol servem acima de tudo, como os circos romanos, de pretexto e libertação do irracional, de regressão do indivíduo a sua condição de parte da tribo, de peça gregária na qual, amparado no anonimato da sua tribuna, o espectador dá rédea solta aos seus instintos agressivos de rejeição do outro, de conquista e aniquilação simbólicas (e às vezes até real) do adversário.” (Llosa, M. V., 2012, “A Civilização do Espectáculo”, Lisboa, Quetzal).
São duas obras preocupadas com o espectáculo mas não com o espectador. Debruçam-se sobre um mas não sobre outro.
Como espectadores rimo-nos da loucura de certas ideias. Rimo-nos quando uma directora executiva da Liga de Clubes nos apresenta as suas ideias sobre as vantagens da decisão no possível regresso da venda de álcool de baixo teor nos estádios de futebol. Rimo-nos quando o problema não está nos desportistas, nos competidores, nos atletas, mas em nós. Na nossa loucura, nós encorajamo-los quando aclamamos as suas vitórias. E nós continuamos atrás do golo! E continuamos atrás do recorde! Vamos atrás da exaltação!
Rimo-nos quando uma directora executiva da Liga de Clubes afirma que “a nossa mentalidade é ainda a de ‘cerveja e tremoço’, portanto temos de dar seguimento.”
Rimo-nos e nem sequer damos conta da loucura da tentativa de perpetuação de uma cultura escondida nestas palavras. Reprodução… diria Bourdieu! Perdemos a possibilidade de análise, perdemos o espírito crítico e não damos conta, como nos diz Llosa nessa mesma obra, que “o vazio deixado pelo desaparecimento da crítica permite que, insensivelmente, a publicidade o tenha preenchido, convertendo-se esta nos nossos dias não só em parte constitutiva da vida cultural como no seu valor determinante.” E é precisamente aqui que reside a grande questão: o espectador existe porque a publicidade necessita dele. Não há espectáculo sem espectador, não há publicidade sem espectador. Este é o eixo fulcral de todo o mecanismo. E “a publicidade exerce um magistério decisivo nos gostos, na sensibilidade, na imaginação e nos costumes” (Llosa, id.).
O espectador tem de consumir não só o espectáculo mas também a publicidade. Quem a paga? Não é o Clube, desiludam-se, somos nós. Não é a TV, desiludam-se, somos nós. Porque quando compramos um perfume, não estamos só a pagar o cheirinho… estamos a pagar a embalagem, estamos a pagar o frasco, estamos a pagar o aspersor, estamos a pagar o rótulo, estamos a pagar os anúncios…
Temos a Liga NOS, a taça CTT, a Liga SportZone… mas já não temos o Pavilhão Atlântico, temos o Altice Arena… já não temos Pavilhão Rosa Mota, temos o Super Bock Arena… temos «a fome de vencer»… “portanto temos de dar seguimento.”
O próprio Comité Olímpico de Portugal recentemente assinou um protocolo com os Vinhos da Bairrada. Ah grandes apreciadores e consumidores dos Vinhos da Bairrada… que irão pagar o famoso néctar, a garrafa, a rolha, o rótulo e… toda a publicidade!
Desde 2006 que a publicidade para produtos relacionados com o tabaco foi banida na Fórmula 1 – antes era norma! Entre nós a Sagres é o parceiro mais antigo da Federação Portuguesa de Futebol – desde 1993: “portanto temos de dar seguimento.” Ou seja: não fumemos mas bebamos!
Quando temos antevisões de jogos e conferências de imprensa em que o que interessa não é o que os protagonistas dizem mas sim a enorme quantidade de logótipos que proliferam nas suas costas e que subliminarmente entram para o nosso cérebro, temos de dar seguimento a umas bjecas, a uns tremoços e a uns caracóis… temos de dar seguimento à loucura.
E recordamo-nos aqui que Demócrito, respondendo a Hipócrates (2009, “Do Riso e da Loucura”, Lisboa, Padrões Culturais), lhe disse: “Atribuis ao meu riso duas causas, as coisas boas e as coisas más, porém, na verdade, não me rio senão por uma razão, do homem insensato, desprovido de rectidão, pueril em todos os seus desígnios e que sofre, sem daí retirar benefício algum, com os infindáveis esforços que envida, e que é impelido por imoderados desejos a aventurar-se, até aos limites da terra e nos abismos imensos, na conquista de prata e ouro, não cessando jamais de os alcançar, sempre afadigado em granjear mais, a fim de não ficar na ruína.”
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