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terça-feira, 12 de junho de 2018

O mais difícil cromo da bola

"O Mundial da Rússia só chega esta semana, porém os autocolantes da Panini, menos elusivos que as estações do ano, há algum tempo que já cá estão para pôr os pais a fingir que é para os filhos

Um dos grandes inconvenientes de chegar à meia idade sem filhos é não ter uma boa desculpa para coleccionar cromos. Os filhos, desde o momento do nascimento, fornecem ao homem adulto, ocidental e com um acentuado lado juvenil o pretexto mais conveniente para continuar a comprar carteirinhas e encher cadernetas com fotografias de jogadores de futebol. Sem o remorso da desculpa esfarrapada, a febre volta a cada dois ou quatro anos, caso seja um purista de Mundiais ou lhe junte também os Europeus.
Nem sequer é preciso que os filhos se entusiasmem no vício – um pai que se preze sabe que os vícios são maus e caros e não se devem legar de ânimo leve –, basta a sua existência para justificar o perdurar da mentira. Nenhum adulto compra, realmente, cromos com afinco e preenche com esmero a caderneta por causa do seu recém-nascido que ainda mal viu o mundo ou do adolescente degenerado que só sabe jogar “Call of Duty” com os amigos na Playstation.
Antes pelo contrário. Os filhos são desculpa, mas não há desculpa para deixar um pirralho de três anos mexer numa caderneta. Se quer colar cromos tortos, riscar, pintar, rasgar, que tenha caderneta própria. E mesmo aqueles que já sabem dar valor a um cromo bem colado, mesmo esses só têm direito aos repetidos – primeiro está a colecção do pai que é para o filho, depois a do filho.
Os cromos Panini das grandes provas futebolísticas de selecções fazem parte do imaginário humano desde a primeira caderneta comercializada pelos irmãos Panini para o México 70 – curiosamente a única em que figura a taça Jules Rimet porque nesse ano o Brasil conquistou o seu terceiro título e levou-a para casa. Ainda este ano se comercializou em leilão online uma dessas cadernetas, completa e autografada por Pelé (com respectiva foto comprovativa do rei a segurá-la), pela módica quantia de 12.038 euros.
John Crace dizia em 2010, no “Guardian”, que se trata de uma actividade “cara, frustrante” e “completamente viciante”, em que se paga 0,90 euros por cada carteirinha de cinco cromos e acaba-se sempre com uma montanha de jogadores repetidos e uma enorme frustração por tanto se tardar a encher a caderneta.
Se alguém tivesse a sorte de lhe sair sempre cromos diferentes em cada carteira adquirida, completar a colecção de 682 autocolantes (cresceu incomensuravelmente desde os 288 da primeira, tal como o Mundial; no México eram 16 selecções, na Rússia vão ser 32) custaria mais de 123 euros. Mas isso nunca acontece.
Paul Harper, professor da Escola de Matemáticas da Universidade de Cardiff, fez o cálculo e estabeleceu que no Reino Unido completar a caderneta do Rússia 2018 da Panini custa uma média de 773 libras (880 euros). E isso quando se consegue, quando não se tem de recorrer à compra de cromos avulsos no mercado negro ou pela internet (há anos que perto da estação do Rossio, em Lisboa, se trocam, se vendem e se compram cromos). O que acrescenta mais uns quantos euros ao custo.
Todos sabemos dos cromos mais difíceis da bola. Nas colecções da Panini sempre se disse que havia jogadores impossíveis, as dores de cabeça de todas as cadernetas. Feitos, lá está, para que os incautos coleccionadores continuem a comprar carteirinhas e a engordar os cofres da empresa – a Panini vai garantindo regularmente que todos os cromos têm o mesmo número de exemplares impressos e comercializados.
No Reino Unido, alguém testou a teoria de Paul Harper e comprou 1000 carteiras de cromos e mesmo assim não conseguiu completar a colecção, ficou a faltar o elusivo Radja Nainggolan. Vingança dos deuses em nome do belga que nem sequer foi escolhido por Roberto Martínez para o Mundial e já anunciou a decisão de abandonar a selecção.
De acordo com a experiência do site MusicMagpie, o símbolo da Federação Portuguesa de Futebol figura entre os mais raros, com uma hipótese em 5000 de obtê-lo. Por cá, segundo um “especialista” (na verdade, um adulto que colecciona, mas não tem filhos para se justificar), o Nainggolan não parece assim tão difícil. Uma vista de olhos por alto no site Troca de Cromos mostra que não aparece na maioria da lista de faltas, embora também não surja nos repetidos.
Entre os mais custosos estão, sim, os símbolos das federações, não só da portuguesa, e há até quem faça especulação. Os cartazes das cidades organizadoras, Neymar e o cromo 00, o logótipo da empresa (Giuseppe Panini gostava de enigmas e quebra-cabeças e criou palavras cruzadas com o pseudónimo Paladino, daí o cavaleiro do símbolo), também se encontram entre os frutos mais evasivos dos coleccionistas portugueses.
“Parei de gastar dinheiro em cerveja, deixei a bebida, em vez disso comecei a coleccionar estes cromos”, dizia Dave, um homem nos seus trintas, durante um evento de troca de cromos em Manchester, citado por um artigo do “Guardian” de 2016. Até o argentino Carlos Tévez chegou a aparecer, quando ainda jogava no City, chapéu enterrado nos olhos em busca de cromos. E nessa altura ainda não tinha nascido o filho, mas já tinha duas filhas, o que até para um coleccionador machista já serve como álibi para arranjar mais uma caderneta."

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