"Há dias, no contexto do campeonato mundial de sub17 a decorrer na Índia, um dos últimos gigantes a despertar, fascinado, para o fenómeno planetário do futebol, apareceu num dos vários canais desportivos aqui no Brasil um jovem repórter, tomado por um rubor súbito da surpresa, escancarando um indisfarçado contentamento pelo facto de ter encontrado, ali em tão remotas e improváveis paragens, vários cidadãos nativos expressando-se numa português capaz de fazer corar a muitos que o têm como língua materna. E acrescentava, com um comovente garbo de iniciante, que Goa, onde acabara de se alojar a selecção brasileira,, tinha sido possessão portuguesa (ele disse colónia, quem sabe se num ínvio remoque de um difuso ressentimento) até 1961.
É claro que não houve uma única menção a Nheru que, pela calada da madrugada e aproveitando-se deslealmente de tão gritante assimetria de forças em confronto, obrigou o desamparado Vassalo e Silva a uma inglória e dolorosa claudicação. Trata-se, porém, de uma omissão significativa: como se, implícita, estivesse a universal convicção, tingida por uma ideologia do tiro, de que a razão está sempre do lado do colonizado, esquecendo, no caso vertente, que nem a Índia era uma colónia de Portugal (fora-o de outros|) nem Goa era em rigor uma colónia no sentido pejorativo do termo: a esmagadora maioria dos goeses desejavam continuar portugueses – mas foram amordaçados em tão exótica e ousada pretensão pelo cio expansionista de um governo que mal tolerava ter como vizinha a diferença. E, nesse sentido, não é mera curiosidade estatística o facto de termos em Portugal na liderança do governo um primeiro-ministro cujo pai nasceu em Goa (Orlando da Costa).
Mas sigamos em frente, que o mais interessante da reportagem está para vir. Em jeito de triunfal confirmação de tão imprevista descoberta, o jovem repórter brasileiro, ufano do seu troféu, exibia, à continuação, uma entrevista que, afinal, era um testemunho, talvez até um manifesto cultural, com um colega goês que, expressando-se num irrepreensível português, capaz de deixar orgulhoso o próprio Camões que bem conheceu aquelas paragens – nem sequer um traiçoeiro sotaque a denunciar-lhe a lonjura! - teceu um dos mais comoventes elogios a Portugal e ao povo português e à sua maneira tão particular de se relacionar com a diferença.
Dizia o insuspeito jornalista goês (eles fazem questão de se afirmarem goeses, que não propriamente indianos):”nós aqui, em Goa, que foi território português até 1961, vivemos uma situação cultural muito especial” - singular, acrescento eu. “...há aqui católicos, hindús e muçulmanos e todos vivem em perfeita harmonia: esta a grande herança que recebemos de Portugal”. E, incluindo nesta referência o povo brasileiro, que as boas maneiras ficam sempre bem, desejou sorte à sua jovem selecção e prognosticou duas coisas: sucesso e apoio dos goeses. Comovente, sem dúvida!
E dei comigo a pensar, com uma lágrima indiscreta a aflorar ao canto do olho: se nada mais tivéssemos deixado em Goa como marca indelével da nossa presença, isto teria sido já o suficiente para nos deixar orgulhosos e de consciência tranquila. De facto, pensava eu, Portugal é muito mais que esta faixa rectangular nos confins da Europa, uma mera porção de território: Portugal é, antes do mais, uma ideia, se calhar, uma emoção que, qual átomo de Régio, se soltou por esse mundo fora, numa espécie de suspiro pelo infinito. O português debruça-se sobre o parapeito da mítica janela do Oceano e espreitou e não cessa de espreitar mundo e mais mundo – mas não para dele se apoderar, para sacar, mas para dar-se. Dar-se na íntima e genuína disponibilidade para o diálogo cálido dos corações.
Por isso há o Brasil, esta obra-prima da arquitectura dos afectos, que logrou esta dinâmica concertação das diferenças na vivência unitária desta “amorável” pátria. E aí está essa Goa, na sua invejável ‘harmonia dos contrários”, a confirmar a nossa histórica e singular aptidão para a arte das simetrias. Portugal: terra de geógrafos da Alma! Portugal: a “Mátria” de todas as nossas pátrias – incluindo esta que é a nossa, Portugal!"
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