"Ó Dona Flora, quantos anos tem?" Eusébio adorava espicaçar a esposa, sabia que ela se punha toda refilona quando ele a provocava. Ele não era perfeito, ela sabia-o bem, mas lá que tinha sentido de humor, tinha. Uma vez, a mulher vestiu umas calças cheias de lantejoulas e preparou-se para sair. Ele estava a ver um jogo na televisão, mas todo aquele brilho quase o cegou. "És capaz de me dizer onde é o espectáculo hoje?", atirou-lhe num sorriso trocista. Depois chamou as miúdas e fez delas suas cúmplices: "A vossa mãe vai dar um concerto e não fomos convidados." Era a sua forma de dizer que não gostava daquelas calças.
Flora cresceu a vê-lo jogar à bola descalço, com os pés em fogaréu, nas ruas da Mafalala, bairro pobre da periferia de Lourenço Marques, hoje Maputo. A mãe dele, a Dona Elisa, pedia ao rapaz que fosse fazer uns recados e ele esquecia-se de tudo e ficava ali a dar pontapés na bola de trapos, trocando as voltas aos mais graúdos. Chamavam-lhe o Magagaga, porque corria tão depressa que não havia quem o apanhasse. E chutava cá com uma força! Um dia fez um remate estourar na barriga de um guarda-redes e ele ficou ali, prostrado, a vomitar.
Um dia, Flora foi a Lisboa a um sarau de ginástica e a Dona Elisa pediu-lhe se podia levar uma encomenda ao seu menino: uma caixa com camarões, "que ele adorava". O rapaz crescera e fizera-se homem. Jogava no Benfica e na selecção portuguesa, brilhava em estádios de todo o mundo, vencera a Taça dos Campeões Europeus ao Real Madrid do seu ídolo Di Stéfano. A ele nada disso importava. Tinha tudo aquilo com que sonhara: ser jogador da bola.
Para o mundo ele era o "Pantera Negra", o "King", o fenómeno vindo de Moçambique que estava a caminho de se tornar o primeiro negro a ser considerado o melhor da Europa. A ela nada disso importava. Era o seu Eusébio. Ainda em miúdo, ele convenceu-se que um dia iria casar-se com ela. E, quando se casaram, ela percebeu que aquele homem, que viria a tornar-se uma lenda, não era só dela. Era de toda uma nação que o idolatrava, orgulhosa do talento dele.
50 anos não são 50 dias, são uma vida. Mas três anos, aqueles que passaram desde a morte dele, parecem a Flora três dias. A dor e a saudade não desaparecem, só aumentam. "Há dias em que penso que não é verdade o que aconteceu", confidenciou-me há duas semanas. Às vezes, quando está a ver televisão sozinha no sofá, ainda se vira para o lado e comenta algo com ele, como se ele ainda ali estivesse. Outras vezes, quando ouve a porta da rua bater, fica à espera de o ver entrar. A falta que ele lhe faz.
Depois do funeral, veio a transladação para o Panteão Nacional. E depois veio uma exposição, um musical, um filme que chegou esta semana às salas de cinema. Flora não sabe bem como lidar com tanta homenagem pública. Tudo nela é saudade, como num fado de Amália. Como é que se esquece alguém que se amou durante 50 anos? Quando o amor de uma vida parte, como se preenche o buraco que deixou?
"Olhe, é a vida!", dizem-lhe. E ela suspira, para não se enfurecer. Porque aquela dor que lhe despedaça o coração só ela a carrega. Se ao menos houvesse um comprimido para tratar tamanha tristeza."
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