"O Benfica, que resistiu 70 minutos e causou problemas aos rivais, foi goleado esta noite, no Estádio da Luz, pelo Bayern Munique (0-4), num jogo a contar para a terceira jornada da Liga dos Campeões. Leroy Sané foi a figura do jogo, com dois golos, uma assistência e uma belíssima exibição
Faz lembrar aquelas caminhadas ao fim da tarde, quando a noite se impõe e ganha finalmente a batalha com o sol. E está tudo calmo. A chuva cai, mas não molha, é agradável. De repente, sem aviso, desata no festim das nuvens o maior dilúvio de que há memória. Não há tempo para evitar. Não há um lugar para fugir. Conhecem-se os inevitáveis daquele momento, era uma possibilidade, o desfecho não será bonito. Foi bom enquanto durou, desdenha-se no pensamento.
E assim se parece o Bayern.
Estes senhores que vêm de longe, lá da Baviera, são como as nuvens carregadas de chuva, impiedosas, canibais. Não serenam. Optam por continuar, insaciáveis. E há, entre os que assistem a tal espetáculo, uma espécie de sentimento de culpa, um qualquer devaneio voyeurista, torcendo pela presa, pelo protagonista mais fraco, mas, ao mesmo tempo, gera-se uma hormona qualquer da curiosidade pela desconhecida sangria que, quem sabe, está por vir, pelo tal desfecho que sempre soou a possível, transformando-se depois em algo inevitável. O Bayern é isto tudo: porventura a melhor equipa que existe e, agravando s situação, com o maior apetite do mundo.
O Benfica resistiu durante 70 minutos. E não resistiu somente tapando a baliza, foi corajoso, quis condicionar o Bayern lá à frente, perto de Manuel Neuer, e depois soube sair em contra-ataque muitas vezes. Se há coisa que Julian Nagelsmann, ausente esta noite por doença, soube melhorar neste glorioso clube foi a permeabilidade aos contra-ataques alheios. De acordo com este artigo do “The Athletic”, a equipa de Nagelsmann permite atualmente menos um terço dos contra-ataques do que aqueles que eram tolerados durante o mandato de Hansi Flick, o agora selecionador alemão.
Jorge Jesus avisara que ia montar uma equipa para a frente. E foi assim, o que não significa que iria passar mais tempo com a bola ou a atacar. Rafa, Darwin e Yaremchuk teriam o mesmo papel que tiveram na vitória contra o Barcelona, na Luz, sabendo descobrir espaços e mordendo a grandeza do rival. Há um dado que vale a pena sublinhar: que os dois avançados do Benfica tenham capacidade para andar à bulha, em duelos, com defesas como Niklas Süle e Dayot Upamecano fala muito sobre o poderio que mora no ataque benfiquista. Se o ucraniano é mais refinado tecnicamente, o uruguaio revela mais limitações. Apesar disso, foi mesmo Darwin Núñez que convidou Neuer para uma das defesas da noite, talvez a melhor, num lance pela esquerda, que talvez só compita com aquela que o mesmo guarda-redes fez a remate de Diogo Gonçalves (substituiu o regressado e depois lesionado André Almeida).
Embora com menos bola, João Mário e Julian Weigl iam demonstrando detalhes e decisões que correspondem aos grandes futebolistas. Parecem sombras distantes, ligadas pelo intelecto, pois sabem perfeitamente que podem contar um com o outro para saírem de qualquer aperto. Jogaram futebol, bom futebol, e permitiram à equipa respirar com bola em certos momentos, aguentar, esperar e virar o jogo. Mas os colegas, quase sempre, preferiram outra coisa: acelerar, olhando para a frente e explorando as referências que davam soluções no choque, transporte de bola e velocidade.
Do outro lado, a dinâmica da equipa germânica, campeã nacional desde 2013, não era surpreendente. Lucas Hernández, Upamecano e Süle faziam a linha de três, apoiados pelo sempre competente com os pés Manuel Neuer; Kimmich, silencioso operário genial da utilidade suprema, e Marcel Sabitzer fechavam no meio; Pavard dava largura pela direita e Coman pela esquerda (herói da última Champions conquistada pelo Bayern, na Luz); Thomas Müller (por vezes mais sinaleiro do que participante, dava indicações que abriam verdadeiras crateras no meio-campo) e Leroy Sané eram vagabundos na zona do número 10; Lewandowski era a referência, quase sempre às turras com Nicolás Otamendi.
Se Coman, quando entrou em jogo finalmente, foi um ávido carrasco para os dois laterais direitos que teve pela frente, tal é a ginga e veneno no drible, Leroy Sané foi a chave. Tão talhado para ser extremo, converte-se agora num futebolista que sabe jogar por dentro, dotado de um radar descobridor de espaços e, claro, senhor de um pé mais fino do que a areia da mais bela praia. Os movimentos do ex-jogador do City eram e seriam um problema sempre. As rotações com bola, idem. As acelerações. Os remates. Os passes. Os movimentos de arrastamento. Enfim, tudo.
E, é curioso, estamos talvez perante a melhor versão de Sané, até porque é mais alemão do que nunca. Isto é, tem fome como nunca teve. É mais um detalhe que está no artigo do “The Athletic” em cima referido: aprendeu os encantos de jogar por dentro com Nagelsmann, que lhe aconselhou também a encontrar-se com um psicólogo. Deram com a tecla e agora que se lamentem os outros que o têm de parar.
O Estádio da Luz, ciente da realidade e das diferenças em campo, soube sonhar. A cada golo anulado ao Bayern - foram dois -, o rugido subia de tom. Os duelos ganhos na relva, no ar, no choque, na picardia ou na sabedoria eram celebrados como aqueles abraços repetidos nas festas de fim de ano. As gentes sentiam-se representadas e gritavam por eles, pelos futebolistas, quais mensageiros da coragem.
O Bayern teve sempre mais bola, era dono do jogo, mas nunca esteve demasiado confortável. Aliás, isso só aconteceu a partir do minuto 70, quando Leroy Sané decidiu sacudir o pó dos dossiers de estatística. Afinal, esta equipa contava com uma média de 4,3 golos por jogo, que, se eliminarmos o jogo da Taça (12-0), é de 3,6. São, depois desta noite, 56 golos em 13 jogos. É uma máquina trituradora. Antes do fatídico minuto 70, viram-se inúmeras oportunidades de golo, mais do lado do Bayern, naturalmente, principalmente com o remate ao poste de Pavard e um cabeceamento de Lewandowski, que Odysseas Vlachodimos evitou, tal como outras jogadas perigosas dos alemães. O guarda-redes do Benfica, sereno e seguro, ia sendo decisivo. Yaremchuk, depois de se impor a Upamecano, ganhou o corredor, chutou cruzado (não o suficiente para Darwin corrigir) e não esteve longe de organizar um evento de alegria.
Mas voltemos ao minuto 70.
Uma entrada imprudente de Otamendi ao colega de profissão que ia habitando no mesmo metro quadrado que ele ofereceu um livre direto para a canhota de Sané. Fez-se algum silêncio na Luz, talvez se temesse algo. O esfomeado requintado que há agora em Sané meteu a bola na baliza: as redes esticaram-se como fazem quando estão felizes. Um-zero.
E o carrossel começou.
A fadiga que morava na cabeça dos jogadores, esquecido e engolido pela canção que se ouvia no ainda marcador favorável, baixou finalmente às pernas. A maior posse de bola alheia começou a passar fatura, como passa sempre quando se está em desvantagem. A crença e a ilusão num bom resultado é o que mantém a energia ligada e a concentração no pináculo. Depois da desilusão, há muitas vezes o descomprimir, o inevitável, a chuva, o dilúvio. Os adeptos cantaram para os seus jogadores, não queriam que caíssem, já sabem como toca o fado bávaro. Mas não seria possível evitar o que estava por vir, nem os homens que saltaram do banco puderam evitar a sangria (e que ingrato é entrar num jogo com este ritmo e exigência). E, timidamente, imperou o sentimento de injustiça.
Em somente 12 minutos, o Bayern marcou quatro golos. Depois de Sané, Everton Cebolinha marcou na própria baliza, Lewa fez mais um, a passe de Sané, que fecharia a contagem, com mais um detalhe com categoria. O canhoto, mais alemão e sagaz do que nunca, tinha as chaves do jogo e assinou dois golos e uma assistência, homenageando com doçura o número que leva nas costas, o respeitoso 10. E Nagelsmann, que no quarto de hotel se deve ter aborrecido tanto com o zero-zero que colocou Gnabry por Pavard, está cansado de saber que este rapaz vai virar jogos do avesso sempre que quiser.
Alguns adeptos da casa iam saindo quando as escrituras iam aparecendo nos ecrãs gigantes, mas a maioria ficou. Instalara-se então um ambiente fúnebre, com o sangue a escorrer pelas feridas da alma desta gente que passou um dia inteiro a acreditar em sonhos maravilhosos, esquecendo os rumores da impossibilidade. Ouvia-se “sou benfiquista, com muito orgulho, com muito amor” lá ao fundo, triste, conformado, num tom reativo-sereno. Esse cântico cresceu quando estava prestes a soar o apito final do árbitro. Havia, afinal, orgulho. Aquela primeira parte foi importante para calibrar a bússola para o que aí vem."
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