"A primeira camisola de seleção que recebi era da cor do descaro. O número era desinteressante, mas o nome lá gravado cantava sobre alguém que, jogando, exibia um aparente descaso. Era antes uma declaração de amor ao jogo, num idioma que não é percetível para todos. Driblando, salvava o mundo de vez em quando. O suor que lhe escorria marchava para curvar os lábios de outros. Nunca foi o que diziam que ia ser, e se calhar ainda bem. Era um rapaz bom de bola que ia fazendo feliz a mina redondinha e aqueles que entendiam aquele jeito de viver. O Brasil viajava naquelas botas.
Mas as coisas mudaram algures neste século. O triunfo transformou-se na mais popular religião e a perfeita e útil perfeição é o mínimo que se vai exigindo aos que jogam futebol. E as folhas de excel a engordar, insaciáveis, com números que arregalam os olhos dos feiticeiros da obviedade, quais servos da utilidade inscritos no sindicato da certeza. E Neymar, que tal? Ah, a cabeça. E a época que vem aí? Ah, olha a barriguinha [inserir fotografia dos abdominais dos génios anciãos que dominaram a última década e qualquer coisa]. Outro dia, numa futebolada, depois de uma bela ideia mal executada, um amigo de infância mandou para o ar (para mim) um impropério qualquer junto de “Neymar”. Que insulto tão bonito.
Este domingo, ironicamente o Dia Mundial da Saúde Mental, circularam as palavras de Neymar sobre o que vem aí. Ou sobre o que não vem, após o Catar-2022. "Acho que é a minha última Copa do Mundo, encaro como a minha última. Não sei se terei mais condição de cabeça de aguentar mais futebol. Então, não sei. Vou fazer de tudo para chegar muito bem, ganhar com o meu país e realizar o meu sonho maior desde pequeno”, desabafou num documentário da "DAZN". O circo do insulto fez-se à estrada e andou por aí. Também se viram inúmeras palavras de apoio e admiração. Afinal, tem apenas 29 anos. Mas a cabeça, os abdominais e a perfeição.
Em 2016, numa conferência de imprensa, perguntaram-lhe sobre o “comprometimento com a seleção brasileira”, pois, segundo o jornalista, o jogador levava muitos cartões, ia para a balada e não se incomodava de ostentar. Além disso, apesar do discurso coletivista, entrava no relvado para treinar sozinho, talvez por indicação dos patrocinadores. A resposta, entre risos que porventura visavam esfriar a cabeça, merece reflexão.
“Olha, eu acho que você tem que começar a ver as coisas que eu faço dentro de campo. As coisas particulares, a partir do momento que eu estou fora, independente de qualquer coisa, são particulares. Você tem que me cobrar dentro de campo. Falou nos cartões, não tenho problema nenhum em cobrar. Agora, eu tenho a minha vida particular, sou um cara de 24 anos, quiçá novo, tenho as minhas conquistas, tenho as minhas coisas. Eu sou muito tranquilo quanto a isso, pode criticar. Eu tenho os meus erros, não sou nenhum cara perfeito. Também gosto de sair, de me divertir, com os meus amigos. Tenho família e amigos também, porque não posso sair? Porque não posso ir para a balada? Acho que não tem um porquê, não é? Eu posso, sim. Eu vou. Se tenho consciência do meu dever no dia seguinte, eu vou, não vejo problema nenhum, é a minha vida particular. Agora, sempre que estou dentro de campo, eu me entrego, tento sempre fazer o meu melhor, o meu máximo. Acabo errando, sim, como errei já muitas vezes. E ainda vou errar. Isso é normal para um ser humano. (...) Acho que a sua pergunta foi até - desculpa, mas é a minha opinião — maldosa, mas vou levar na boa, não vou responder na maldade, estou-te explicando. Imagina você, com 24 anos, ganhando tudo o que eu ganhei, tendo tudo o que tenho. Você seria o mesmo que eu?”
Isto, a cobrança que vive em loop para tantos, aconteceu alguns dias antes de começarem os Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro. Por ali, nas ruas cariocas (perfeitas por estarem tão longe da perfeição), cheguei a ver meninos fardados à Brasil com o nome de Neymar riscado, substituído pelo da genial “Marta”, escrito à mão, negligente, talvez para ser mais insultuoso. Nem um mês depois, este mendigo do bom futebol testemunhou o golaço de livre na final contra a Alemanha e, claro, o penálti decisivo que lhe saiu da bota direita, virando do avesso o Maracanã. “Tudo passa”, pode ler-se no pescoço de Neymar. E na vida.
É um dos melhores futebolistas que este desporto já viu, mas vai sendo olhado com desdém. Gosto de recordar as palavras de Valdo, numa entrevista à Tribuna Expresso, em agosto de 2020: “Ele é um dos últimos talentos puros, sem agrotóxicos, sem nada, do futebol brasileiro. É o que tem o maior improviso, é o que é mais leve, é o que cativa mais. Se aparecer um extraterrestre que não conheça o Neymar, vê-o jogar e diz: ‘Esse cara é brasileiro, né?’. Com certeza, não tem como enganar. O toque de bola do Neymar é o Brasil da velha escola, da boa escola”.
A versão triste do menino de Mogi das Cruzes esteve no relvado, na noite de domingo, no Colômbia-Brasil, tentando ser o martelo pneumático de algodão-doce que furava a linha defensiva cafetera. Recentemente, Romário, Tostão e Rivellino falaram nele como um dos grandes, sendo que os dois últimos garantiram que jogaria de caras no tal Brasil de 1970. O número 10 alcançou, este domingo, o jogo 114 pela seleção, superando Pelé e Djalma Santos — é o quinto futebolista com mais internacionalizações naquele país, longe de Cafu (150). E golos? Sessenta e nove, só atrás do Rei (77). E dribles? Infinitos. E bocejos alheios? Zero. As pancadas que sofreu levam-nos para outras décadas. Talvez um livro de Ruy Castro fosse útil.
O passe transformou-se na segunda religião mais popular que conhecemos e talvez um dia agonizemos por já não haver gente como ele. Afinal, exibe um falso descaso, mas é antes uma declaração de amor ao jogo, num idioma que não é percetível para todos. Driblando, salva o mundo de vez em quando. O suor que lhe escorre marcha para curvar os lábios de outros. Nunca foi o que diziam que ia ser, e se calhar ainda bem. É um rapaz bom de bola que vai fazendo feliz a mina redondinha e aqueles que entendem aquele jeito de viver. O Brasil viaja naquelas botas."
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