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quarta-feira, 7 de julho de 2021

O fim da minha infância futebolística


"A 5 de julho 1982, no Estádio Sarriá, o futebol mudou para sempre, e todos mudámos um pouco com ele: nunca mais ninguém jogou um jogo tão puro e tão artístico como aquele Brasil.

Eu tinha 11 anos, e naquele verão quente os nossos jogos, na calçada da Praceta de Sofala, no bairro da Figueirinha, em Oeiras, conheceram outros protagonistas. Subitamente, ninguém era mais Carlos Manuel, Jordão ou Chalana.
Todos queriam ser Zico. Sócrates. Junior. Falcão. Éder. Não me lembro de alguém querer ser Serginho ou Valdir Peres.
Todos os jogos eram uma espécie de Maracanã, de miúdos que nunca tinham ido ao Brasil, a não ser nas novelas da Globo.
Tínhamos visto, justamente na televisão, aquele Brasil bater um frágil Portugal por 3-1, em maio, em S. Luis do Maranhão. Depois a selecção brasileira tinha treinado no Estádio Nacional e na Luz, antes de ir para Espanha. Habituámo-nos às suas caras, nas páginas gigantescas do jornal A Bola, apaixonámo-nos pelo seu jeito brincalhão nas entrevistas. Vimos os desenhos animados do Naranjito e decidimos: «Vamos ser do Brasil!»
Até porque, nessa altura, a ideia de uma seleção portuguesa ir a um Mundial era tão verosímil como a ideia de Portugal fazer um foguetão e chegar a Plutão.
E depois o carrossel começou a andar, em Sevilha, Mundial dentro: 2-1 à URSS (os golos de Sócrates e Éder são poemas), goleadas à Escócia e Nova Zelândia, e, já em Barcelona, a campeã em título Argentina varrida por 3-1 e Maradona expulso, de cabeça perdida, no meio daquele ciclone de futebol bonito, toques de calcanhar, fintas de circo. Jogar como se fossem miúdos na praceta, uma malandrice vestida de azul e amarelo.
Perder com a Itália? Só por piada. Para mim, que tinha 11 anos e a visão linear que se tem do Futebol aos 11 anos, era evidente: os italianos não ganharam nem um jogo da primeira fase, com Polónia, Camarões e Perú, vão ganhar à equipa do futebol bonito?
Mas foi.
Lembro-me que chorei, no fim do jogo. Estava em choque. O empate teria bastado.
Um lance, em particular, bailava na minha mente, ressentida e amuada, com o golpe sofrido: Óscar sobe à área, cabeceia, Zoff faz a melhor defesa da sua carreira (diria o veterano guardião, anos mais tarde) e segura a bola, junto ao poste, em cima da linha.
Parecia-me criminoso, o Brasil estar fora do Mundial. Paolo Rossi? Nunca tinha ouvido falar.
Mas haveria de saber, muitos anos mais tarde, o que pensou aquele anti Cristo número 20 dos italianos, na sua mais gloriosa tarde.
«Sabíamos estar perante uma das melhores equipas de todos os tempos. Eu tinha visto os seus jogos e eles pareciam marcianos. Jogavam e memória, podiam jogar de olhos vendados, de tal maneira era perfeito o entendimento entre eles. Mas nenhuma equipa é invencível. E naquele dia encontraram uma seleção italiana particularmente inspirada. Nada nem ninguém pararia os 11 mosqueteiros azzurri», escreveu Paolo Rossi, no prefácio do livro de Paulo Roberto Falcão, «Brasil, o time que perdeu a copa e conquistou o mundo».
Sou tão marcado por este jogo, que procuro tudo o que me possa explicar com mais e mais profundidade o que aconteceu ali. A criança que eu era nunca se conformou. Ela e eu sabemos bem que aquilo não teve explicação. Nem há justificação. É crime.
Ora o livro é a radiografia desse Mundial 82 feito pelo extraordinário médio brasileiro da Roma. Falcão escrevia crónicas diárias, que enviava de Espanha para a Folha da Tarde, jornal de Porto Alegre.
Na manhã seguinte ao jogo de Sarriá, os leitores de Falcão leram as sofridas palavras escritas pelo número 15 daquele escrete.
«Terminado o jogo, ninguém falava. O Júnior ainda tentou animar a gente, falando, meio com raiva, que apesar da derrota tínhamos de lembrar que fomos a melhor equipa da Copa. Mas quase ninguém ouviu direito. A viagem de ónibus também foi silenciosa e na concentração foi ainda pior.»
O livro foi publicado em 2012, 30 anos depois do jogo. E Falcão foi perguntar aos colegas de equipa, 30 anos depois, a pergunta que, acredito, baila no espirito de milhões de pessoas, a quem este jogo marcou como nenhum outro:
«Porque perdemos?»
Valdir Peres diz que foi porque a Itália esteve sempre na frente do marcador. Que o Brasil, marcando primeiro, não perderia nunca. Leandro fala em erros próprios. Luisinho diz que foi falta de humildade. Éder considera que foi um «aborto da natureza». «Demos um vacilo e a Itália aproveitou», referiu. Junior confessa, com graça, que nunca encontrou resposta para essa pergunta. Zico foi pragmático: «A Itália foi melhor.»
Deve ter sido. Foi, mas como?
Olhemos a estatística do jogo.

                      Brasil Itália
Faltas                 18 20
Passes Errados   40 31
Remates à baliza 7 5
Ataques               23 6

Cínicos.
Gentille foi tudo menos isso e o árbitro deixou. Eu agarrei-me a tiradas assim, esperando que uma intervenção divina pusesse a mão na consciência e fizesse o tempo voltar atrás, para repor a justiça. E a infância nos fosse devolvida.
Porque, naquele dia, acabou a minha infância futebolística. As 44 mil pessoas que encheram o Estádio Sarriá, devidamente demolido, anos mais tarde, não sei se tiveram noção de que, em cada um deles, algo teria igualmente mudado, para sempre, no seu entendimento do jogo.
Nunca mais ninguém jogaria tão puro. Futebol sem sombras nem medos. E com arte.
As vezes que já procurei na net por uma camisola daquelas, Topper, símbolo do café do Brasil metido no escudo da CFB. Até já escrevi à marca. Não há. Virou mito, aquela camisa amarela.
Até o árbitro do jogo, o israelita Abraham Klein, refere que percebeu logo, quando o jogo acabou, que tinha feito parte de um encontro para a história. Diz que Sócrates o cumprimentou , sem nada dizer, de olhos cheios de lágrimas, a caminho dos balneários, no final do jogo. E que nunca se esqueceu dessa imagem.
Brasil - Itália, 1982. Que tragédia.
No final do seu livro, Falcão decide responder à tal pergunta; porque perdemos?
E eu adoro essa resposta, é a melhor de todas. Porque consegue apaziguar aquele Pedro de 11 anos. Falcão diz que ganhámos. «Aquele Brasil de 82 foi um campeão do encantamento.»
E foi. E é, para sempre. Uma equipa para todas as idades que tivemos e teremos. E mesmo depois. Não me lembro de nenhuma outra equipa com esse poder.
Ganhámos. Faz a festa, torcida brasileira! Afinal, ganhámos."

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