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sábado, 1 de fevereiro de 2020

Os leaks e o estado do Direito

"A revelação de que os Luanda Leaks tiveram origem em Rui Pinto levou muitos a invocar o Estado de direito, para excluir o uso judicial desses leaks, fazendo-me interrogar sobre o estado do nosso Direito.

Apelam ao texto de certas normas para, sem oferecer margem para outras interpretações, defender a inconstitucionalidade e ilegalidade de tal uso. Sucede que normas idênticas existem em muitos estados de direito (quase toda a Europa, EUA e Canadá) sem conduzir à mesma conclusão...
Um relatório europeu sobre o uso judicial de prova obtida ilegalmente* (em particular, através de violações da vida privada, como as intrusões informáticas), comprova isto mesmo. Em todos os países europeus existem normas (constitucionais ou não) que excluem o uso de prova obtida ilegalmente, mas estas normas têm sido interpretadas, atendendo a outros valores do sistema de justiça, de forma a permitir o uso dessa prova. Praticamente todos os estados permitem usar essa prova, satisfeitas certas condições, nomeadamente sendo ela corroborada por outras provas ou impondo que o juiz faça uma ponderação entre a importância dessa prova para a descoberta da verdade e o valor da protecção da esfera privada nesse caso concreto.
Esta posição, comum à quase totalidade dos estados europeus, é também a posição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que entende que "o uso de prova obtida ilegalmente, em particular prova obtida em violação do Artigo 8 da Convenção, relativo ao direito ao respeito pela vida privada, não determina, necessariamente, que o processo não seja justo". Mais, o relatório recorda que a justificação para limitar o uso desta prova em tribunal é ainda menor se a violação da privacidade não foi cometida pelo Estado, mas sim por um privado, acabando depois por ir parar à posse do Estado (é o caso dos leaks).
Nesta circunstância, o uso desta prova pelo Estado não recompensa qualquer violação cometida pelo próprio Estado e a violação feita pelo privado continuará a ser sancionada. Logo não se colocam em causa os valores do Estado de direito que se pretende proteger limitando o uso de certos meios de obtenção de prova pelo Estado. Outra coisa é se a utilidade dessa prova para outros processos e a colaboração de quem a obteve ilegalmente podem mitigar a responsabilidade criminal dessa pessoa (no caso português, Rui Pinto). Normalmente isso acontece, mas é uma questão distinta. O que resulta claro deste relatório é que ou temos um problema de violações sistemáticas do Estado de direito na Europa (com a feliz exceção portuguesa...) ou temos um problema com a compreensão do Estado de direito em Portugal.

* Opinion 3/2003 of the EU Network of Independent Experts on Fundamental Rights "

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