"Na semana passada levei o meu gato ao veterinário para ser esterilizado. Como rezam os comunicados, a intervenção cirúrgica foi um sucesso, pelo menos do ponto de vista clínico. Quanto ao gato, amputado da sua masculinidade, passou o fim-de-semana num estado semivegetativo, melancólico, dando mostras de um enfado existencial pessoano. Limitou-se a ingerir alimentos, mais por obrigação do que por gosto, e a satisfazer (se o verbo se admite em tais circunstâncias) as necessidades fisiológicas que a sua anatomia reconstruída lhe permite. Ao fim de três dias, parece já mais gordo, um gato de sacristia, meio eunuco de harém otomano, meio boneco de peluche.
Porém, é com o Benfica que no sábado enfrentou o Futebol Clube do Porto que as semelhanças são impressionantes. Após um arranque de época demolidor, embora nem sempre elegante e fluido, o Benfica chegou ao clássico com fama de predador voraz, insaciável. Só que Sérgio Conceição, reputadíssimo veterinário da antiga escola superior das Antas, já tinha preparado a mesa de operações. Nas vésperas do jogo adormeceu o gato com falinhas mansas sobre plantéis riquíssimos e o bichano, ainda que desconfiado dos elogios, lambeu-se prazenteiramente e assim continuou até ser tarde demais. Quando despertou, o mal estava feito, as bancadas já estavam quase vazias e era hora de regressar aos balneários, arrastando-se mole e atordoadamente, e tentar perceber o que lhe tinha acontecido.
Com precisão de anatomista, Sérgio Conceição retirou-lhe as presas, removeu-lhe os testículos e cortou-lhe as unhas. Transformou-o num gato ornamental, sem o mínimo protesto. Só faltou vestir-lhe uma daquelas camisolinhas com que as senhoras de idade gostam de aperaltar os seus animais de estimação. Porque – e este é que é o problema – podia ter sido bem pior. No futebol, o único génio infalível é o resultado da semana. Um bom resultado pode maquilhar, enganar, disfarçar e animar. Um bom resultado transforma um gato coxo numa chita. Já um mau resultado destapa, revela e desmoraliza. Até o mais vivaz dos gatos parece morto. Mas quando uma equipa perde por 2-0 em casa contra o maior rival e o resultado ainda assim é a única coisa positiva, então temos uma crise. Não uma daquelas crises romanas, grandiosas, mas a crise de um gato que, aliviado da sua masculinidade, começa a perguntar-se se ainda é gato ou se já é outra coisa.
Eis o estado do Benfica de Lage após o primeiro despiste significativo. O resultado é um tirano porque as vinte vitórias em vinte e um jogos de pouco ou nada valem quando se perde o vigésimo segundo jogo desta maneira. É o mesmo que sair de um acidente, ver o carro todo espatifado e dizer “até hoje os travões nunca me tinham falhado”, na esperança de encontrar consolo nessa perfeição pretérita. O resultado é um tirano porque as vitórias davam margem a Lage para elogiar o trabalho defensivo dos avançados ou festejar a invenção de um lateral direito que só tem pé esquerdo.
O resultado é um tirano porque, com vitórias, todos os plantéis parecem riquíssimos e um clube até se pode dar ao luxo de dispensar um Krovinovic, um Zivkovic e um Cervi, com o esbanjamento ofensivo do novo-rico. O resultado é um tirano porque, de repente, sente-se a falta daqueles jogadores e o treinador confessa que só tinha Pizzi e Chiquinho para jogar entre linhas. O resultado é um tirano porque, na ausência de Gabriel, Lage foi obrigado a justificar a aposta em Samaris com razões de ética castrense e solidariedade de caserna, seguindo o mesmo caminho para proteger Nuno Tavares: “não deixamos ninguém cair”, proclamou, com certa grandiloquência militar, ignorando que, por vezes, é preciso deixar cair um homem para que a equipa se mantenha de pé.
De uma penada, o Benfica perdeu duas das maiores inteligências que alguma vez vestiram a camisola encarnada: Jonas e João Félix. Percebeu-se desde o início que Lage quis fazer de RDT um João Félix. O resultado é um tirano porque, ao fim de três vitórias, mesmo sem golos, havia tolerância para um RDT disfarçado de Félix. O resultado é um tirano porque, após a primeira derrota, esgotou-se a paciência para um RDT que nunca poderá ser Félix e que, pelo andar da carruagem, arrisca-se a nunca ser RDT. Sobretudo porque ao seu lado tem um Seferovic viciado na inteligência de Félix ou de Jonas. Não quero ser ingrato para o jogador suíço. Ele mostrou ser um excelente cábula. O problema é que agora espreita para o lado e vê uma folha em branco e o colega a roer a tampa da caneta e a coçar a cabeça.
O resultado é um tirano, mas foi a exibição paupérrima a assustar os benfiquistas. Mesmo se Marega tivesse sido Marega no lance do segundo golo e tivesse desperdiçado aquela oportunidade, a goleada por 1-0 teria sido suficiente para revelar as carências de um plantel “riquíssimo”. Numa altura em que o jogo já estava à medida das melhores qualidades dos jogadores do Porto, a forma como Marega, com a sua volumetria de soba, ultrapassou o fleumático Ferro, com a sua magreza aristocrática de Jude Law, expôs as debilidades que os resultados tinham vindo a disfarçar. Pior que perder por 2-0 em casa foi chegar ao fim do jogo sem fazer um remate digno desse nome, o que faz antever sérias dificuldades quando vier a Champions, competição em que se espera que os avançados do Benfica se comportem, em primeiro lugar, como avançados do Benfica e não como abnegados carregadores de piano. Quem se mata a carregar pianos depois não tem nem a fineza nem a frescura para acertar nas teclas.
Para já, segue-se um dificílimo jogo na Pedreira. Os benfiquistas não se importam que, à falta de perdigueiros, Bruno Lage vá à caça com gatos. Esperam apenas que os gatos sejam gatos completos e não o arremedo de gato em que o bisturi do doutor Conceição os transformou durante aquela penosa hora e meia."
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