"Era assim que Artur, o Ruço, corria. Despetalando flores à moda de Vinicius. No seu jeito agarotado de quem vai pela planície da relva da juventude colhendo papoilas encantadas...
Dizem que quando o corpo humano perde uma parte de si próprio há uma dor estranha que fica para sempre no lugar do membro amputado.
Artur Correia, o Ruço, não o confirmou: 'Antes de me tirarem a perna, sentia dores terríveis!'
A perna esquerda de Artur.
Ele que fugia pela direita como D'Artagnan, cabelo longo ondeando nas costas, um nunca mais acabar de energia, dezenas de pulmões respirando para trás e para a frente nos relvados de todo o mundo, parecia que a gente ouvia o seu arfar quando via o jogo ali, perto do campo, junto à linha lateral que era o risco onde media o seu inconformismo.
Na semana passada falei aqui da Minicopa, no Brasil, em 1972.
Artur estava lá, claro! Artur era o dono do lugar.
Defesa-direito. Depois passou a dizer-se lateral-direito.
Se calhar por causa dele, que se recusava a ser um simples defesa e partia, em desfilada, soldado sem medo no campo de batalha do inimigo.
Um dia, Stefan Kovács, treinador do Ajax, disse que ele era o melhor da Europa no seu lugar.
Não sei se Artur o terá ouvido. Ou se terá lido o que se dissera sobre ele.
Não precisava. Artur era ele e as suas próprias contingências.
Teria sido capaz, se quisesse, de continuar a correr resolutamente em direcção ao meio-campo contrário mesmo sem a sua perna esquerda. Como os mártires dos campos de batalha das guerras napoleónicas, espadachim da bola inquieta, também ele inquieto por dentro à maneira de um rapazinho que não quer voltar a casa ao fim da tarde quando a voz da mãe o chama do alto da janela da infância.
Não teve jeito para os livros
Foi do Benfica para Coimbra e voltou. Iria também para o Sporting, ele que sempre afirmou o encarnado da sua escolha, coração vermelho de camisola verde às riscas.
Não teve jeito para os livros, para a monotonia do estudo.
Chamava-o a liberdade da relva.
Vi-o uma vez marcar um golo à Noruega, quase de meio-campo, no Estádio Nacional, tarde morna num Jamor florido.
Vi-o muitas vezes, pela direita, ele que tinha algo de esquerdo, daquele esquerdo de quem é contra, de quem não obedece aos ditames das regras imprecisas, de quem ama a vontade de ser diferente, impossível de copiar.
Não houve nunca mais um Ruço como o Ruço.
Seria impossível um Ruço como o Ruço.
Lembrem-se da forma como galgava metros, insubordinado, intranquilo. A bola na sua frente, a vida na sua frente.
A bola que era também a vida.
O Destino, cruel e infame, roubou-lhe saúde desde miúdo. Pleurisia e o fim do Benfica para ele. O Benfica da camisola, não o Benfica da alma.
O sangue traiu-o- Diminui-o. Destroçou-o.
E ele, irónico, de peito aberto contra os ventos da desgraça.
Continuou a correr solto pela existência da rebeldia.
A injustiça canalha da doença: não devia ser permitido tirar uma perna ao cavalinho de raça que anseia pelo galope.
Artur era assim: galopava.
Continuar a galopar despetalando rosas à maneira de Vinicius.
No seu jeito agarotado de quem colhe papoilas encantadas e madressilvas mágicas.
Corre, Artur! Corre!!!
Corre nesse teu correr tão fácil como um domingo de manhã!"
Afonso de Melo, in O Benfica
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