"Era ele e as suas circunstâncias: José Torres. Lutando como Quixote contra os moinhos do esquecimento que ia ocupando a sua vida. E os moinhos de vento entravam em sua casa, entravam na sua cabeça, iam dominando o seu mundo...
Lembrei-me de Torres: José Torres. Dificilmente um homem podia ser tão ele e as suas circunstâncias, como diria Ortega y Gasset. Conheci bem José Torres. Ou muito me engano ou terlhe-ei feito a última grande entrevista. Uma entrevista de vida. Uma entrevista de século. Ou da passagem dele. Nessa altura já se perdia muito na sua batalha contra moinhos de vento. Era um Quixote gigante numa guerra perdida. Perdida contra si próprio e contra a memória que se desfazia aos poucos. Os moinhos de vento entravam em sua casa, entravam na sua cabeça, iam dominando o seu mundo. E ele ficava distante. Cada vez mais distante e mais só.
José Torres ensinou que o futebol é feito de sonhos e que os sonhos se tornam realidade. Logo ele que se perdeu na Terra dos Sonhos como Peter Pan de regresso à infância. Era o ponta-de-lança a caminho do esquecimento. Esqueceu-se de si próprio e esqueceu-se dos outros. Infelizmente, houve muita gente que se esqueceu dele, igualmente.
Portanto, lembrei-me de Torres. É importante lembrarmo-nos de Torres e de todas as suas circunstâncias. Recordo-o sentado na sua casa pequena, acolhedora, com uma camisola de Santos na mão. Tinha o número 10 nas costas. Pertencera a Pelé. Houve um jogo nos Estados Unidos entre Benfica e Santos. Fernando Riera disse-lhe para marcar Pelé. E Torres secou Pelé como se fosse um Vicente. «Só que ele marcou um golo. E que golo lindo!» Mas tinha outra. Camisola, quero dizer. Também de Pelé. A do jogo do Mundial de 66. «Tínhamos combinado antes de começar a partida que iríamos trocar de camisola no final. Trocámos». Contou ele e eu ouvi. Ouvi dele dezenas de histórias. Torres era um grande contador de histórias. Foi-o sempre enquanto se lembrou delas. Depois desapareceram. Tornou-se tudo num pesadelo.
Os pombos não voavam
António Tabucchi gostava de Torres. Era assim uma espécie de preferência no meio dos jogadores do seu tempo. Em «A Cabeça Perdida de Damasceno Monteiro», conta: «Desejou bons dias e pôs-se a andar. Firmino ficou a vê-lo afastar-se. Era baixinho, com um tronco grande de mais para umas pernas muito curtas. Curiosamente lembrou-se de um outro Torres. Mas a esse, nunca o conhecera, só o vira em imagens da época, na televisão. Era um Torres muito alto, que fora o ídolo do seu pai, o Torres que jogava como avançado-centro no Benfica dos anos sessenta. Não sabia jogar, dizia-lhe o pai, mas bastava-lhe esticar a cabeça e zás, a bola entrava na baliza sozinha».
O meu futebol é feito de pessoas. Prefiro que me contem a realidade dos seus acontecimentos. Felizmente ouvi futebol pelas palavras daqueles que o jogaram. Gente de todas as gerações, de todos os países. Histórias com as suas circunstâncias, como os homens. Às vezes há erros e omissões. É assim que funciona a memória.
Torres estava a caminho de perder a memória mas contava histórias. E sonhos. pela primeira vez o futebol ouviu uma súplica pungente: «Deixem-me sonhar!»
Deixaram? Não sei. Mas ele acreditava no sonho.
Sobre os armários empilhavam-se as taças. De vez em quando mostrava-me uma delas em particular e explicava-me a sua proveniência. E eram tantas as ganhas nas provas de columbofilia, outra das suas grandes paixões, como as ganhas no futebol. Depois ficava de pé. A sua figura ocupava a sala, deve ter aprendido com o tempo a não abusar dos gestos, de cada vez que abria os braços, o espaço torna-se pequeno para os restantes, deve ter sido de alguma forma assustador quando saltava dentro da grande-área na sua alma de gigante. De Bom Gigante.
Hoje foi importante lembrar-me de Torres. Como se ele estivesse à espera de voltar às páginas dos jornais, aos campos de futebol, à realidade do seu universo antes da maldição do esquecimento. Bastava-lhe esticar a cabeça... como escreveu Tabucchi no último parágrafo do seu capitulo número 10. O número das lendas e das lendas que elas sabem contar. Pela janela via-se o quintal e os pombais. Chovia. E os pombos não voavam."
Afonso de Melo, in O Benfica
Uma dos lendas do nosso 4º anel!
ResponderEliminarSalvé Bom Gigante!