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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Valeu, Luís Fernando


"É graças à casta a que pertencia Luís Fernando Veríssimo que voltamos às origens e ao verdadeiro motivo de gostarmos tanto de futebol. Principalmente quando este se torna chato

Sou de um tempo em que, na ausência de Portugal nos Campeonatos do Mundo de futebol, torcia invariavelmente por uma seleção estrangeira. Itália pelo que representava para lá da bola, a Argentina e o Brasil pelos seus gigantes na relva. E sim, era possível gostar destas duas seleções de rivalidade ancestral, tal como é possível gostar de Messi e Ronaldo ou simpatizar com a causa palestiniana sem aderir a um antissemitismo primário. Bem sabemos que este centro, uma casa de pensamentos e sentimentos aberta à esquerda e à direita, ao Norte e ao Sul, é um lugar cada vez mais vazio porque quase todos se deslocaram para os extremos, sejam eles quais forem, porque aí não há a maçada do contraditório e só se fala daquilo que cada um quer ouvir. Onde não há, como um dia escreveu Miguel Esteves Cardoso, os «inteligentemente indecisos», mas apenas aqueles que têm todas as certezas do mundo.
E no mundo da bola também acontece o mesmo. Se és Argentina não podes ser Brasil, se és Brasil não podes ser Argentina. Recordo-me que em tempos caí na tentação de entrar na trincheira. A magia de Maradona cegava, a roçar o religioso, e obviamente que naqueles oitavos de final em Turim, no Mundial-90, celebrei efusivamente o golo de Caniggia que eliminou uma canarinha cinzentona.
Mas só anos mais tarde percebi a trapaça da água com Rohypnol, um tranquilizante que os argentinos terão colocado na água para os brasileiros beberem, com grande impacto no lateral-esquerdo Branco, à data no FC Porto e o melhor marcador de livres de que me recordo depois de Roberto Carlos. Um episódio confirmado pela boca do então selecionador do Brasil, Sebastião Lazaroni, sentado numa esplanada de um hotel em Alexandria, no Egito, em 2007, como treinador do Marítimo, em que também me revelava a regra que tinha com os seus jogadores: «Sou como o irmão mais velho deles, mas aquele que tem sempre razão.»
É esta leveza discursiva natural dos brasileiros, de humor ondulante e sedutor, que me devolveu desde muito cedo a paixão pela forma como se vive a bola num português adocicado e harmonioso e que encontrou no futebol a tela perfeita para a sua máxima expressão. A culpa é de uma geração fantástica de escritores brasileiros nascidos na primeira metade do século XX aos quais gosto de dar uma visita sempre que o futebol se torna demasiado chato e estatístico. Um deles é Luís Fernando Veríssimo, que nos deixou no passado dia 30 de agosto. Não sei se gostava mais do que ele escrevia sobre a vida ou sobre o futebol, apenas sei que, além de me ter feito rir e pensar um milhão de vezes, ele foi o responsável pela minha descoberta, numa fase inicial adulta, de todos os monstros que o precederam, uma colheita irrepetível que deu ao futebol uma nova forma de o viver em palavras.
É voltando atrás no tempo, como as idas à casa da avó Celeste para provar os biscoitos de mel e erva doce, e em algumas páginas já carcomidas pelos elementos, que me recordo de como o mais importante neste desporto nunca foi nem será a voragem do mercado de transferências, mas a capacidade de nos devolver às coisas mais simples. «Só o futebol permite que você sinta aos 60 anos exatamente o que sentia aos 6. Adulto seria largar a paixão, mas não há uma maneira adulta de ser apaixonado por futebol», escreveu este fanático do Internacional de Porto Alegre.
Valeu, Luís Fernando."

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