"Os carrascos dos portugueses seriam os primeiros finalistas da então Taça das Nações da Europa, em 1960. O sonho lusitano, com Matateu e Coluna em destaque, caiu por terra perante a fineza do número 10 jugoslavo e companhia
O povo português não sabe o que é estar ausente de uma competição, seja Europeu ou Campeonato do Mundo, desde 2000. A cada dois anos, os amigos e as famílias juntam-se à frente da televisão para ver os rapazes de vermelho com jeito para convencer a bola a fazer certas coisas. Mas não foi sempre assim.
Só 36 anos depois da primeira edição do Mundial, que teve lugar no Uruguai em 1930, é que Portugal se estreou naquelas andanças (Inglaterra-66). Quanto a fases finais de Campeonatos da Europa, que arrancaram em julho de 1960, os portugueses só se estrearam em 1984, em França. Foi preciso esperar muitos anos para se saber como suspiram e se enamoram as multidões que ocupam as bancadas das grandes competições.
Quando se desbobina a fita do primeiro Campeonato da Europa e vemos aquela final four, com França, Jugoslávia, Checoslováquia e União Soviética, parece que os portugueses nunca tiveram hipótese de entrar naquelas jogatanas históricas. Mas tiveram…
A caminhada lusa para o Europeu - ou Taça das Nações da Europa, um sonho de Henri Delaunay que teve de esperar que a desavinda pólvora baixasse os olhos - começou a 21 de junho de 1959, em Berlim Oriental. Portugal, com golos de Matateu e Mário Coluna, ganhou a primeira mão contra a República Democrática da Alemanha. O enviado especial do “Diário de Lisboa”, Fernando Soromenho, apreciou o desempenho do avançado do Belenenses: “Agressivo, batalhador e entusiasta, causou grandes calafrios nas hostes adversárias, pois a sua exuberância, combinada com a subtileza de Carlos Duarte, foi poderosa arma de desmembramento da defesa adversária”.
Num jeito de outros tempos, Figueiredo, que fez carreira no Belenenses, resumiu então assim o jogo: "Os alemães entraram cheios de genica, julgando por certo que arrancariam triunfo fácil. Engaram-se, porém, porquanto acabámos por chamar a nós a vitória, aliás merecidamente. Gostei da minha atuação. (...) Dos alemães gostei do [Günter] Schröter", um atleta do BFC Dynamo.
Na segunda mão, nas Antas, os portugueses voltaram a vencer: 3-2, cortesia de Coluna (2) e Cavém. Soromenho, dificilmente impressionável, escreveu: “Em estilo desorganizado, sem rompantes de ‘raça’, o grupo nacional consentiu um resultado enganador que não se coaduna com a capacidade técnica dos alemães”.
"Os alemães jogaram com muito mais dureza que em Berlim", sentenciou então Cavém, futebolista do Benfica. "Lá, o jogo foi muito mais agradável e mais correto." Coluna concordou que os rivais foram mais temíveis: "Jogaram mais desta feita. Apesar disso, julgo que vencemos bem e que o resultado se ajusta ao desenrolar da partida".
Seguiu-se a Jugoslávia, que havia eliminado a Bulgária na ronda anterior, para a derradeira eliminatória antes da tal final four.
Os jugoslavos eram finos a jogar. O meio-campo gostava de tocar a bola, Perušić tinha categoria, Kostic era potente e veloz junto à linha, havia mobilidade, harmonia, uma ideia (menos física) e pouca urgência, jogava-se bem. Mas o mago dos magos, e que nenhuma alma e coração parem de latejar sem o ver jogar, era Dragoslav Šekularac, o camisola 10.
Corria como correm os craques, era fino do mais fino que há, jogava com as duas pernas, era daqueles que já usava recorrentemente o calcanhar e obrigava o realizador a puxar a fita atrás. Até podia começar pelo lado direito, mas o campo era todo dele, procurava os espaços. Era um génio.
“Não foi em poucas ocasiões que a imprensa internacional lhe ofereceu uma alcunha que então era talvez a melhor que alguém podia dar a um futebolista do Velho Continente: o Garrincha europeu”, pode ler-se no livro “Sueños de La Euro”, de Miguel Pereira. Mané Garrincha, campeão do mundo pelo Brasil em 1958 e inflamador de corações suecos, era quem sabe o futebolista mais importante do mundo na época. Quando Šekularac morreu em 2019, aos 81 anos, o seu Estrela Vermelha prestou homenagem ao “rei do drible”.
O primeiro jogo daquela eliminatória, com quase 40 mil pessoas no Jamor, até correu bem. Joaquim Santana e Matateu trataram de fazer o marcador bailar até ao 2-0. Bora Kostić reduziu a nove minutos dos 90.
O exigente repórter do “Diário de Lisboa”, que já antecipava uma jornada dura em Belgrado, deixou-se seduzir pela qualidade dos visitantes. “Os jugoslavos são aquilo que vimos nos dois Mundiais de 1950 e 1954. (...) Notável técnica individual, no controle, na condução e cobertura da bola; passes matemáticos e terrivelmente enganadores, e uma concepção, digamos, descontraída do futebol concebido como ‘associations’.”No fundo, “era um exemplo típico da tradicional escola húngara”, escreve, numa referência aos magiares mágicos dos anos 50, os tais que massacraram a Inglaterra, em Wembley, no jogo do século, trocando a bola com mestria e revelando um dos primeiros falsos 9 da história, Nandor Hidegkuti.
Portugal estava assim a 90 minutos da primeira fase final da inédita Taça das Nações Europeias. “O triunfo luso ficou quase ferido de morte com o inoportuno golo de Kostić perto do final”, recuperamos um trecho do livro “Sueños de la Euro”. “O 2-1 deixava tudo em aberto para o jogo da segunda mão, em Belgrado. Ali, os portugueses aguentaram o pulso dos locais até ao intervalo, mas os rivais começaram a assegurar a passagem à fase final com um golo madrugador da sua grande estrela, o demoníaco Šekularac.” Depois do 1-0 aos 18’, Cavém até empatou, deixando a imaginação salivar, mas aquela Jugoslávia era outra loiça e acabou a golear Portugal por 5-1 (marcaram ainda Srdjan Cebinac, Milan Galić e Bora Kostić duas vezes)
“Baile de grande gala em Belgrado”, berrava a página 17 do “Diário de Lisboa”. “O encontro de Belgrado não representou mais do que a simples confirmação do que cepticamente se pensava a respeito da selecção nacional, cujos mentores quase se esfalfaram a apregoar que a vontade, a valentia, o espírito de luta, a confiança, a atmosfera de optimismo, etc, etc, obram prodígios e seduzem quantas vezes a deusa da Fortuna…”. O cronista falou então de um jogo abraçado pela euforia, graças a uma multidão brindada com “uma exibição de fino recorte técnico, altamente prometedora”.
Os portugueses foram engolidos por “teias de passes, fintas e dribles plenos de preciosismos técnicos, ligados a um conjunto harmonioso, límpido e, ao mesmo tempo, terrivelmente prático e eficaz”, celebrava Fernando Soromenho, que, não querendo deixar qualquer dúvida quanto ao seu sentimento, deixou ainda outra nota: “Venceu, de longe, a melhor equipa e os 5-1 não traduzem suficientemente a supremacia total revelada pelos jugoslavos”.
O sonho dos portugueses de jogarem uma fase final de um Campeonato da Europa teria de esperar 24 anos, uma estreia que seria apenas travada pelo quadrado mágico francês que jogava como quem bebia champagne.
A Taça das Nações Europeias, que teria como palco um dos territórios finalistas, teve lugar em França, num evento ainda não tão importante como seria mais tarde, menor do que Jogos Olímpicos e Campeonato do Mundo. A Checoslováquia e a União Soviética, que beneficiou da desistência da Espanha, pois o ditador Francisco Franco não queria misturas em solo comunista, foram os outros finalistas.
As meias-finais ditaram Jugoslávia-França e URSS-Checoslováquia. No primeiro jogo, no Parque dos Príncipes, em Paris, os jugoslavos mostraram o que haviam mostrado com Portugal e lograram uma cambalhota fascinante no resultado, vencendo por 5-4 uma seleção que não pôde contar com Raymond Kopa, Roger Piantoni e o killer Just Fontaine, que ainda detém o recorde de golos num Campeonato do Mundo - 13, em 1958.
No outro encontro, no Vélodrome em Marselha, os soviéticos despacharam os checos por 3-0, com golos de Valentin Ivanov (2) e Viktor Ponedelnik. Na baliza estava o mítico Lev Yashin. Na final, após prolongamento, a União Soviética foi mais feliz naquele duelo comunista e venceu os rivais por 2-1, com mais um golo de Ponedelnik, que em russo significa segunda-feira. "A final começou às 22h00, horário de Moscovo, no domingo, e no fim do prolongamento já era meia-noite, basicamente segunda-feira", contou uns anos mais tarde o camisola 9 soviético. "O meu apelido foi um sonho para as manchetes!"
A Jugoslávia, o carrasco de Portugal, voltaria a uma final em 1968, mas tropeçaria na derrota novamente, desta vez com a Itália de Facchetti, o homem com sorte ao jogo. A Jugoslávia é o país que mais derrotas tem em finais de Europeus sem saber como é levantar a taça Henri Delaunay."
Sem comentários:
Enviar um comentário
A opinião de um glorioso indefectível é sempre muito bem vinda.
Junte a sua voz à nossa. Pelo Benfica! Sempre!