"Ao contrário de outros cronistas, escrevinhadores e filósofos ainda não tive oportunidade de me sintonizar com o novo coronavírus para lhe fazer a sacramental pergunta: “qual é a tua, ó meu?” Nestes dias de distanciamento social, que muitos já corrigiram para distanciamento físico, ao coronavírus já vestiram muitas camisolas: é ecologista, é anti-capitalista, é um emissário da Mãe-Natureza, é um indivíduo apreciador de golfinhos e cisnes nos canais de Veneza (por onde, ao que consta, os golfinhos já nadavam e os cisnes já se passeavam antes da pandemia), é chinês, é um produto criado em laboratório pelos americanos (a propósito de nada, lembrei-me daquela famosa frase de um francês “o anti-americanismo é o socialismo dos idiotas”), etc.
O tempo que agora sobra a alguns dá-lhes para a atribuição de uma vontade ao vírus, da mesma maneira que, após o terramoto de 1755, se dizia que tamanha catástrofe só podia ser castigo divino e, quando a Sida começou a dizimar a comunidade homossexual nos Estados Unidos, no início da década de 80, vozes piedosas atribuíram a praga ao comportamento aberrante, bestial e contrário às leis de Deus dos homens que se deitavam com homens.
De certo modo, todos veem num mundo virado do avesso a oportunidade de o moldar de acordo com as suas preferências. O vírus marcaria, pois, o advento de uma nova era, que cada uma imagina à sua maneira, e é quase impossível, para quem está sentado em casa a desfrutar das vantagens de pertencer ao primeiro mundo, não ceder à tentação de receber o vírus como um anjo purificador. Para uns, será o fogo justiceiro que se abateu sobre Sodoma e Gomorra, para outros será uma versão viral do grande dilúvio, em que só Noé e a sua família se salvaram e a restante humanidade, indiferente aos avisos divinos, pereceu. Lembram-se do final da história? O arco-íris apareceu nos céus como promessa de que Deus não voltaria a destruir o mundo pela água. É o arco-íris que agora vemos nas janelas: “vai ficar tudo bem.”
Ao paciente leitor que me acompanhou até aqui e, com legitimidade, se questiona sobre o que terá isto que ver com futebol ou desporto respondo sinceramente: tudo e nada. Tudo porque as competições foram interrompidas e, tal como a poluição diminuiu na província chinesa de Hubei, também sobre a bolha futebolística desapareceram as nuvens tóxicas de intermináveis e inúteis discussões sobre foras-de-jogo e cambalachos de bastidores. Nada porque ainda ninguém se atreveu a dar ao novo coronavírus uma cor clubística, embora os adeptos do Liverpool tenham legítimas razões para desconfiar que o universo, a Mãe-Natureza ou uma divindade arcaica não gostem lá muito do clube. Agora que se preparavam para festejar um título que lhes foge há trinta anos, acontece-lhes isto.
Tudo porque, pelo menos em Portugal, onde o primeiro-ministro pôs o futebol numa quarentena social, isolando-o de outras actividades económicas, os responsáveis perceberam que, não obstante a aparente fidelidade dos adeptos, a sociedade no seu todo não vai derramar lágrimas por uma indústria que, nos últimos anos, tudo fez para se descredibilizar. A não ser para os mais fanáticos, o futebol de clubes em Portugal tornou-se um pântano infrequentável, um lamaçal de suspeitas, casos judiciais, manobras obscuras e guerrilhas permanentes. A selecção lá vai reconciliando, esporadicamente, a população com o jogo, mas, no resto do tempo, um indivíduo que goste moderadamente da modalidade não se atreve a tocar-lhe nem com pinças.
Os inúmeros debates televisivos ajudaram a criar a ilusão de que, em Portugal, o futebol estava vivo. Hoje, após duas semanas sem jogos, vemos que era uma carcaça em putrefacção. Hoje, por razões de higiene moral, ninguém lhe quer dar a mão. Hoje, ouvem-se as lamentações do presidente da Liga de Clubes e ninguém se compadece. Dizia Arrigo Sacchi que o futebol é a mais importante das coisas menos importantes. Está aí a prova. Temos saudades? Sim, dos jogos e dos jogadores, das jogadas e dos golos, da arte e dos festejos, da distracção que o futebol, desde os primórdios, nos oferece: um breve domingo de sol antes de uma semana de chumbo. Depois lembramo-nos que o futebol é agora a própria semana de chumbo e o sol de domingo quase nunca se vê e pensamos que esta quarentena pode, afinal, ser a oportunidade de redescobrirmos o que ele tem de belo e incorruptível. Sem vestir camisolas ao vírus."
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