"A recente mobilização de 85 mil sócios nas eleições de um clube desportivo revela muito sobre a natureza profunda do desporto português e vale uma reflexão.
À boleia das eleições num clube de futebol, o país lembra-se de que o desporto, antes de ser negócio, é pertença. Quando 85 mil pessoas se deslocam para votar, não estão apenas a escolher um presidente de um clube, estão a reafirmar uma ideia de comunidade, uma identidade coletiva. Estão a dizer, com o cartão de sócio na mão, que o clube ainda lhes pertence.
Lembro que isso já tinha acontecido no Belenenses durante a última década em várias eleições e no epicentro da guerra associativa contra uma entidade externa, nas últimas eleições no FC Porto e no Sporting e em momentos diversos no Marítimo, no Vitória e noutros clubes de menor nomeada, um pouco por todo o país.
Estes casos evidenciam que os sócios querem ter voz, querem participar, querem que os clubes continuem a ser deles.
Afinal continua a haver um lugar onde a democracia ainda se cumpre com fervor cívico, emoção genuína e filas dignas de um referendo histórico, esse lugar é nas eleições naqueles clubes desportivos, com história, que continuam a manter na sua base associativa a sua força motriz.
Ironias da vida: talvez o associativismo desportivo seja, hoje, o último reduto funcional da democracia portuguesa.
Lembro que o desporto português nasceu em moldes associativos com clubes de bairro, coletividades, dirigentes voluntários e sócios com voz. Eram estruturas cívicas, não empresas. A paixão estava no centro, não o capital.
Clubes como o Belenenses, o Benfica, o FC Porto, o Sporting, o Marítimo ou o Vitória, que não por acaso continuam a ser os maiores clubes nacionais, não são meras marcas registadas, são comunidades com alma. Têm militância, têm cultura, têm história e são lugares onde o sentimento de pertença ainda vale mais do que o valor das ações. «
Mas, nas últimas décadas, fomos convencidos de que o futebol devia modernizar-se. E a modernidade, dizem, fala a linguagem do capital. Assim nasceu a Lei das SADs, que prometia transparência e sustentabilidade, mas acabou por transformar clubes em empresas e sócios em figurantes. A paixão foi remetida para o folclore das bancadas, enquanto as decisões passaram a ser tomadas em conselhos de administração, sempre em nome da profissionalização.
A partir daí, muitos clubes deixaram de ser nossos para passar a ser deles, dos investidores, dos acionistas e dos consultores financeiros que percebem de tudo, menos de bola (ou de alma). O resultado é, em muitos casos, um paradoxo: clubes com dezenas de milhares de associados, mas sociedades desportivas controladas por minorias de capital.
No meio de tudo isto percebe-se claramente que os clubes que ainda resistem no modelo associativo, onde os clubes ainda detêm a maioria do capital social das suas sociedades desportivas (Belenenses, Benfica, FC Porto, Sporting, Vitória, Marítimo e outros), mantêm viva uma ideia fundamental: a de que o desporto é um bem cultural, não apenas económico. É essa estrutura que garante militância, fidelidade e valores que não se compram nem se vendem. Quando um clube pertence aos sócios, o erro de gestão é punido nas urnas; quando pertence a um investidor, é apenas deduzido no IRC. E, como já referi, esses clubes que mantêm a matriz associativa, não há como dizê-lo de outra forma, continuam a ser os maiores do desporto em Portugal.
Por tudo isto, é altura de repensar a Lei das SADs.
Depois de quase 30 anos de Lei das SAD’s (1997), o panorama não é famoso e é evidente a devastação de um conjunto de associações desportivas/clubes de relevância nacional ou regional com o desaparecimento ou envio para a irrelevância de nomes que eram incontornáveis no futebol português.
Do outro lado, do lado dos clubes tomados por investidores, não se conhecem exemplos de capital (talvez com uma lupa se encontrem um ou dois exemplos) que tenham formado sociedades desportivas de raiz ou que tenham investido em sociedades desportivas originadas por clubes e gerado uma matéria crítica duradoura do ponto de vista desportivo, da formação dos jovens e da relação com a comunidade.
Por isso, ou continuamos este magnífico caminho ou recentramos a lei das sociedades desportivas em função da natureza do desporto português, em que o núcleo essencial é o movimento associativo, sem prejuízo do mesmo poder coexistir com iniciativas empresariais puras (sociedades desportivas de raiz) ou iniciativas empresariais mistas (participação em sociedades desportivas originadas por clubes, respeitando o clube e a sua missão comunitária).
Talvez esteja na hora de dar um passo em frente, ou melhor, de olhar para o exemplo certo: a Alemanha, onde o sistema 50+1 garante que os clubes mantêm, pelo menos, 50% do capital mais uma ação nas suas sociedades desportivas. Em termos simples: o poder de decisão continua do lado dos sócios. O resultado? Clubes sólidos, finanças equilibradas e estádios cheios. A cultura desportiva é preservada, sem que se abdique da competitividade.
Portugal precisa de discutir seriamente um modelo semelhante.
Este último fim de semana mostra, sem margem para dúvidas, que quando lhes é dada a palavra, os sócios respondem em massa. Essa energia democrática não deve ser desperdiçada. Num país onde a participação cívica rareia, o associativismo desportivo continua a ser uma das mais vibrantes formas de exercício de cidadania.
Talvez o futuro do desporto português dependa justamente de recuperar essa essência — de voltar a pôr o clube antes da empresa, o nós antes do eu e a paixão antes do lucro."º
Patrich Morais de Carvalho, in A Bola

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