"A língua portuguesa é muito traiçoeira, costumamos dizer… Não, a língua portuguesa nem é sequer traiçoeira, nós é que fazemos com que ela se torne traiçoeira. E ao pretendermos que ela seja traiçoeira, atraiçoamo-nos… umas vezes por questões de semântica, outras por simples e mera ignorância. Ou ainda por sermos condicionados.
Recorre-se como justificação à homonímia – “rematar” qualquer actividade ou tarefa, de finalizar, concluir, e “rematar” à baliza (chutar, de ‘shoot’, o tiro finalizado em golo) – e a tudo o que é ‘cliché’ – “vamos deixar tudo em campo”, “vim para ajudar a equipa”, “ganhamos ou… morremos”, “perdemos mas saímos de cabeça erguida”.
Utiliza-se indiscriminadamente vários termos por incúria, provocando um esvaziamento dos conteúdos dos mesmos, vulgarizando-os. Dois exemplos: um deles é “fair-play” (que formas de? Em que circunstâncias?); o outro é “verdade desportiva” (qual é de facto o seu conteúdo?) – veja-se Dias Ferreira e Fernando Seara em «A Bola» (respectivamente 03.04.2021, p. 38 e 20.03.2021, p.31). Banaliza-se a equidade e banaliza-se a justiça. Em inúmeros artigos, textos, livros, crónicas, comentários, estes dois termos desconceituados são utilizados sem os seus utilizadores previamente se preocuparem em defini-los e sem explicarem de que e sobre o que estão a falar. Seguindo uma via normal estes termos completamente inócuos são reproduzidos ao infinito. Tal como o “no pain, no gain”, o expoente máximo da pedagogia da dor, que nos pretende inculcar o princípio de que para vencer é preciso sofrer!
Na maior parte dos estudos, tal como na comunicação social, os termos “agressão” e “violência” no domínio do desporto quase que se confundem, embora o segundo seja mais utilizado para os actos agressivos que são mais desaprovados socialmente… tudo o resto é “agressão”. Utilizamos demasiadas vezes o verbo “agredir” e escassas vezes o verbo “violentar”.
A ética no deporto vem muitas vezes ao de cimo quando na realidade, em vez de se discutir esta, se deveria debater a moral no desporto.
Misturamos conceitos como “indústria” e “comércio” de tal modo que categorizamos o futebol profissional e todo o desporto espectáculo como indústria quando na realidade são comércio. Há a negação do termo “comércio” por este estar mais associado ao negócio, ao intermediário e ao lucro, em benefício do termo “indústria” (não é por acaso que se vulgarizou a “indústria do espectáculo”) dado ligar-se este inconscientemente a um contributo para a economia, a uma promoção do desenvolvimento e do crescimento económico (veja-se aqui o artigo «Desporto: indústria ou comércio?» de 04.03.2021).
Por último, a utilização mais que banalizada do termo “atitude” – “a equipa apresentou em campo uma atitude agressiva” ou “o jogador mostrou uma atitude determinada”.
Quando Jorge Valdano («A Bola», 23.01.2021, p.32) diz que “o desejo de culpar fala da falta de atitude” utiliza o termo correctamente. Já não o faz o antigo jogador do Wolverhampton Karl Henry quando se refere ao abruptamente falecido Lee Collins (Sky Sports online, 02.04.2021) e afirma: “lembro-me de Lee como um jovem jogador no Wolves. Ele era um bom rapaz com uma grande atitude.”
Qualquer neófito em psicologia sabe que uma atitude é uma tendência interna do indivíduo, uma propensão para. Não é visível, embora se possa medir (escalas de Thurstone, de Likert, de Guttman ou de Osgood). O que é visível, e como tal observável, é o comportamento do sujeito. As atitudes, tal como os valores, as crenças e as normas são determinantes do comportamento, não são o comportamento. Logo, não se pode – não se deve – utilizar o termo “atitude” em detrimento de “comportamento” como forma de empolgar a acção tornando-a mais relevante ou de a tentar branquear tornando-a mais justificável.
Usando-se este termo, muita tinta que correu nesta última semana sobre a “atitude” de Cristiano Ronaldo por causa de um golo que foi injustamente negado à selecção nacional num jogo contra a Sérvia. O jogador quis abandonar o campo antes do apito final, retirou a braçadeira de capitão e arremessou-a ao chão. Não foi uma questão de “atitude”. Foi uma questão de “comportamento”.
Acontece que, muitas vezes, senão na maior parte das vezes, temos a convicção que estamos a ser informados quando na verdade estamos a ser manipulados. Temos a convicção que estamos a adquirir conhecimento quando na verdade estamos a ser condicionados. E como nos disse Aldous Huxley (1), “está-se de tal modo condicionado, que ninguém pode deixar de fazer o que tem a fazer.”"
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