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terça-feira, 30 de dezembro de 2025

Vivemos na paranóia do FutVAR (e o pior está para vir)


"Nota: nenhum lance vivo foi utilizado para a escrita deste texto. Nenhuma jogada foi maltratada para a feitura destas linhas. Nenhum caso foi perturbado. Tudo é um teste em laboratório em ambiente controlado.

Dois jogadores de futebol vão disputar um duelo dentro da área. O atacante sabe que, além de tentar jogar a bola, deve fazer-se à jogada de forma a que, a dado momento, uma das suas unhas fique debaixo da sola do adversário.
Porquê? Porque assim, quando o lance for visto na televisão, haverá um frame que obrigue à marcação de penálti.
Após a jogada se disputar, entra em ação o banco. Deve ser estridente e audível. Juntam-se as bancadas à festa, que devem gritar e protestar.
Voltemos ao teatral atacante. Além de colocar a ponta do seu pé em posição de ser pisado, deve rebolar no chão após a jogada. Durante a maior quantidade de tempo possível. Deve chamar os médicos, os bombeiros, a Força Área, a NASA. Tem de demorar a maior quantidade de tempo possível até se voltar a levantar.
Porquê? Quanto mais tempo passar até ao recomeço do encontro, maior a pressão sobre o árbitro. Alguém no banco estará a olhar para um ecrã e fará uma expressão muito chocada, como se tivesse visto imagens que revelassem a exata localização da Atlântida. Todos devem garantir que a bola não volta a rolar antes de o árbitro consultar o monitor.
A cada lance na área, o guião deve-se repetir. Não está em causa a nobre arte da simulação de penálti, agora caída em desgraça. Não falamos da natural pressão do público visitante ao árbitro, ninguém quer que isto seja ténis.
Falamos do perverso sistema de incentivos do futebol atual: o incentivo a abordar o lance de forma a que, em câmara lenta e visto de um certo ângulo, pareça falta; o incentivo a que, após o contacto, se fique caído, forçando uma paragem que pressione para se ir ao monitor.
O incentivo que o próprio árbitro tem para nada assinalar, esperando pelas indicações de quem está na sala do VAR. Recorde-se que o VAR é um “árbitro assistente de vídeo”. Assistente. Ao não assinalar nada, o árbitro devia estar a dizer que, para ele, nada se passou. Mas não. No sistema de incentivos atual, apenas aguarda, como uma folha em branco, passivo, invertendo-se a ordem entre juiz principal e auxiliar.
Gerou-se uma paranóia com o VAR. Recordemos o objetivo inicial da ferramenta: mínima intervenção para máximo benefício. Lances claros e manifestos. Erros grosseiros.
… corta para análises a micro-contactos. Raio-X a agarrões e contra-agarrões em pontapés de canto. Teses de físicas dos corpos sobre intensidades de agarrões, quem puxou primeiro e quem puxou depois.
Qualquer comentário que alerte para isto é acusado de ser contra a pureza da verdade desportiva, de ser um batoteiro, de preferir a mentira à justiça. Mas não. Não está em causa a bola que entrou ou não entrou. O fora de jogo que é ou não é. A agressão que escapou ao olhar do árbitro. O avançado que claramente se atirou para a piscina. Esses eram os lances de VAR.
Lembra-se, nos longínquios dias de 2017, quando usávamos a expressão “lances de VAR”? Agora todos os lances são de VAR porque o futebol tornou-se obcecado com ele, como se quisesse buscar uma perfeição dada pela máquina que, simplesmente, não existe.
A paronóia é internacional. Gera horas e horas de discussão porque sentimos que estamos em pé de igualdade com os árbitros, eles e nós reféns de milhares de horas em frente à televisão a virar frames ao contrário. Em Portugal a guerra de palavras vai forte, sem haver inocentes; em Espanha os árbitros ameaçaram um greve devido “às pressões e assédio”; em Inglaterra o caos em torno do VAR é recorrente; em França há tantas ou mais críticas à arbitragem do que por cá.
O futebol é uma das expressões culturais mais populares da história. É, também, um jogo incrivelmente resiliente, com leis que, na essência, são as mesmas há 100 anos. E não se pode dizer que tenha corrido mal a nível de popularidade global da coisa. A paranóia do VAR, as paragens eternas, os lances feitos para a televisão, os penáltis que poderiam ser ou não e apenas o são porque o atacante ficou dois minutos no chão, tudo isto nos aproxima do FutVAR.
No FutVAR, acha-se que um lance só é credível se passar pela máquina, essa purificadora, objeto encantado e benévolo. Sem esse scan, não é um produto legítimo, como se fosse de contrafacção.
Mas atenção: o pior está por vir. Veja-se o que sucedeu no Mundial sub-17, em que se deu a aberração de permitir que cada equipa pudesse pedir que lances fossem consultados pelo VAR. É a amplificação da paranóia.
Os jogadores ficam a saber que podem abordar lances de maneira sexy para os frames, porque o escrutínio em câmera lenta já não depende da vontade do árbitro, mas do pedido da equipa. As equipas técnicas têm elementos só para estarem em cima dessas jogadas, do mini-agarrão que pode ser um mini-penálti, aumentando a obsessão com tudo isto.
Um jogo pensado para a fluidez, para o movimento, partes de 45 minutos sem descontos de tempo, uma sucessão de ações encadeadas, tudo parado em virtude desta paranóia. Não é o futebol, jogo continuado, que recomeça rapidamente onde parou, o lançamento onde a bola saiu, a falta onde se cometeu. É FutVAR, aos solavancos da câmera lenta, o jogo com mais êxito da história da humanidade, vindo do século XIX e pensado para ser analisado em tempo real, a ser avaliado micro-segundo a micro-segundo.
E há mais. Gianni Infantino reúne-se em salas opacas com tech bros e magnatas diversos, esse universo que está obcecada com a inteligência artificial. Quem nos garante que um desses homens não sugeriu a Gianni (ou “Johny”, como diria Trump) que o santo VAR não passasse a ser operado por uma máquina, poupando tempo e recursos humanos? Parece irrealista? O FutVAR em que vamos entrando também o parecia em 2005. Falamos em 2045.
Talvez tudo isto seja inevitável. Possivelmente quem ler isto em 2100 — ainda se vai ler em 2100? — olhará para estas linhas como nós olhamos os que criticavam a abertura do futebol ao profissionalismo, defendendo a manutenção do amadorismo, um debate quente há muitas décadas. Julgará isto um bafiento exercício de conservadorismo.
Por agora, quando o próximo jogo que virem for interrompido por uma ida ao VAR, façam o seguinte exercício: ao verem aquele lance em velocidade normal, em direto, alguém pensou instintivamente que era penálti?

O que se passou
Com Luis Suárez em grande, o Sporting goleou o Rio Ave. Já SC Braga e Benfica empataram num jogo emocionante.
Juan Carlos Ferrero continua sem esclarecer as razões da separação com Carlos Alcaraz, mas abriu-se emocionalmente, falando de “luto” e “dor”. Segue a guerra de palavras: Frederico Varandas disparou com contundência, Villas-Boas respondeu com acusações de “hipocrisia” e “memória seletiva”. Entretanto, o FC Porto foi multado em 12.750 euros no ‘Caso da televisão’.
(Pelo menos) por um jogo, Ruben Amorim fez uma pausa no dogma dos três centrais. E o Manchester United ganhou. O Arsenal permanece no topo da tabela, apesar do sofrimento, e Liverpool e Wolverhampton homenagearam Diogo Jota.
Morreu Carlos Cardoso, lenda do Vitória de Setúbal.
História lusófona na CAN: pela primeira vez, Moçambique ganhou um jogo."

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