"A história é do Dostoiévski: rapaz bem-amado foi em audiência ao governador de uma província russa, velho petrificado na sua dignidade quase sobre-humana. Aproximou-se, inclino-se reverente - e, com sorrateira dentada, arrancou-lhe metade da orelha. Ele, empedernido na sua vetustez, nem em aí ciciou - e o rapaz sai sem que o guarda suspeitasse do que fizera. Ao saber-se, pôs-se o povo em escarcéu a matutar em justificações - e a ninguém ocorreu que fora apenas um simples acto de loucura!
A história é de Os Pessessos - esse genial romance que mostra como um revolucionário pode acabar como um tolo a mortificar-se sem entender que o inferno está dentro de si (e sem de lá querer sair). Mas é mais: é o romance onde demónios entram pelas gretas de almas em dissolução - e uma festa é interrompida por fogo posto, ouvindo-se o clamor:
- O fogo não está nos telhados, está na cabeça das pessoas.
É o romance em que, perante o horror a despegar-se, a multidão formiga em torno do culpado ou na ânsia do bode-expiatório - e em murmúrio se solta:
- Tudo o que aconteceu, aconteceu de modo acidental... Eles estavam bêbados e por isso irresponsáveis...
É o romance em que o terror da chantagem se apaga no restolho da lucidez - e se revela à mulher atormentada que aparece de vestido amarrotado e botões desabotoados, amolgada do seu fado:
- Eu não os matei. Fui contra... E só sabia que eles acabariam mortos...
É o romance onde há psicopatas e dissolutos, esfaqueadores e criminosos:
- Todos os meios são justificáveis para se atingirem os fins da revolução.
É o romance onde há o abastardar do bem pela ilusão do mal - falsos profetas em embustes e apóstolos em vazios de carácter. E, para mim, bem mais perturbador do que eu ver (amiúde) em Bruno de Carvalho o espírito de comedor de orelha - é ver este Sporting (que não pode ser o Sporting) atacado pelo pior desses outros demónios do Dostoiévski."
António Simões, in A Bola
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